28.12.06

Caros, um feliz 2007 com muita sorte e boas novas!

26.12.06

O artigo abaixo, publicado no Globo do dia de Natal, é uma das mais belas coisas que já li em jornal.

"Uma ceia mágica

Frei Betto

A Missa do Galo se encerrou aos primeiros minutos de 25 de dezembro. Padre Afonso se deixara contaminar pela aflição dos fiéis, ansiosos por retornarem às suas casas e desfrutarem a ceia antes de as crianças murcharem de sono. Abreviou a homilia, pulou orações, desejou a todos Feliz Natal e lhes deu a bênção final. Uma dezena de paroquianos se ombreou na sacristia para lhe manifestar votos de boas festas. Presentes se sobrepunham a um canto: camisas, meias, livros, essas coisas adequadas a um homem de Deus.

Dependurados os paramentos, padre Afonso se viu sozinho. Miseravelmente só, em plena noite de Natal. O celibato é um dom e ele sabia tê-lo merecido. Ao longo de vinte anos de sacerdócio, acometeram-lhe muitas tentações. Não era o fascínio das mulheres que o levava a duvidar de sua consagração. Admirava-as, sentia-se gratificado por achá-las belas e atraentes. Sinal de que havia nele um macho, o que no íntimo o envaidecia. Perturbava-o a consciência do pai que nunca fora. Muitas vezes, sentia saudades dos filhos que não tinha.

Atormentava-o se ver sozinho à mesa de refeições. Comer é comunhão, partilha, entremear ao cardápio o diálogo ameno e alegre. O alimento lhe caía insosso e, com freqüência, surpreendia-se sonhando de olhos abertos, a mesa cercada por sua família imaginária.

Naquela noite, a solidão lhe bateu forte. Uma solidão com a ponta de amargura advinda de uma expectativa frustrada. Sentia-a na boca da alma. Nenhum dos paroquianos tivera a generosidade de o convidar à ceia.

Padre Afonso revirou os embrulhos de cores brilhantes e encontrou o que bastava: um panetone e uma garrafa de vinho. Enfiou-os na pasta usada para levar sacramentos aos enfermos e se dirigiu à zona boêmia.

Shirley trazia os olhos inchados, o peito sufocado, o coração miúdo. Desde o fim da tarde chorara copiosamente ao recordar os natais de sua infância no norte de Minas. Lembrou da família que a repudiara, do marido que a abandonara, do filho que dela se envergonhava. Sentiu ódio da vida, da desfortuna a que fora condenada. Confusa, teve vontade e medo de sentir ódio também de Deus.

Pudesse, não trabalharia naquela noite. Todavia, não lhe restava alternativa. O acúmulo de dívidas a obrigava a ir à rua e aguardar o dinheiro ambulante que chegava escondido atrás da fantasiosa excitação de sua fortuita freguesia.

Mirou o homem de pasta na mão, camisa sem gola, sapatos escuros. Talvez viesse do trabalho. Enquadrou-o na tipologia adquirida em tantos anos de calçada: tinha o jeito ingênuo dos que buscam apenas se aliviar e, na hora da cobrança, preferem ser generosos no pagamento a enfrentar uma prostituta irada disposta ao escândalo.

Trocaram olhares e ela se esforçou para estampar um sorriso sedutor. Ele parou e indagou; ela apontou o hotel na esquina. Caminharam lado a lado em silêncio, ela sobrepondo seu profissionalismo aos sentimentos esgarçados, ele apreensivo frente ao receio de ser flagrado ali por algum conhecido. Subiram as escadas opacamente iluminadas, em cujos degraus as baratas se desviavam ariscas.

Ao abrir o primeiro botão da roupa, ela ameaçou dizer qualquer coisa, mas ele se adiantou. Explicou que não estava ali em busca de sexo, e sim de companhia. Haveria, contudo, de pagar-lhe o devido. Contou-lhe de seu sacerdócio e de sua solidão, e indagou se ela se dispunha a orar com ele e compartir a ceia.

Shirley sentou na cama, enfiou o rosto entre as mãos e desabou em prantos. Agora era um choro de alívio, de gratidão por algo que ela não sabia definir, quase de alegria. Logo, falou de seus natais na roça, o presépio em tamanho natural que o pai armava no quintal do casebre, o peru engordado durante meses para a ocasião, o bendito puxado por uma vizinha na falta de igreja e padre naquelas lonjuras.

Padre Afonso propôs fazerem uma oração. Ela se ajoelhou e ele a tomou pela mão e fez com que se sentasse de novo. Ele ocupou a única cadeira do quarto. Abriu o Evangelho de Lucas e leu, pausadamente, o relato do nascimento de Jesus. Em seguida, perguntou se ela gostaria de receber a eucaristia. Shirley pareceu levar um choque. Como ela, uma prostituta, poderia receber a hóstia sem sequer ter se confessado? O sacerdote leu o texto de Mateus (21,28): "As prostitutas vos precederão no Reino de Deus." E acrescentou que era ele, e essa sociedade cínica, injusta, desigual, que deveriam se confessar a ela e pedir perdão por a terem obrigado a uma vida tão degradante.

Após a comunhão, padre Afonso tirou dois copos da pasta, encheu-os de vinho e partiu o panetone. Os dois ainda conversavam sobre suas vidas enquanto clareava o dia."
A primeira vez que ouvi "Sex machine", do James Brown, não gostei. Achei rascante demais, crua demais. Mas, anos mais tarde, "I got you (I feel good)" me tirou a implicância. É uma pena que o "hardest working man in soul" se tenha ido. Bom, pelo menos o céu vai ficar bem mais animado.
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11-12-2006

A PRAGA DOS "MOJOS"

André Machado

Recebi um recorte digital do "Washington Post" muito preocupante. O recorte conta as novidades inventadas por uma cadeia americana de jornais para fazer face ao crescimento avassalador da internet. A mídia impressa, de fato, está tendo de se adaptar aos novos tempos em que o ciberespaço elevou à enésima potência as conseqüências da "aldeia global" prevista por Marshall McLuhan. Entretanto, as mudanças promovidas por um jornal da mencionada cadeia, no estado da Flórida, merecem reflexão.

O site do jornal passou a ser o principal receptáculo das notícias apuradas. E os repórteres que as escrevem não têm mais mesa, cadeira, terminal - em suma, não têm redação para onde voltar após as tarefas de apuração. Eles não vão a campo; eles vivem em campo. São, por isso mesmo, chamados de "mobile journalists", ou "mojos" (a palavra "mojo" em inglês também é gíria para "feitiço"). Os "mojos" praticamente ficam na rua o dia inteiro, em seus carros, como aqueles tiras que vemos nos seriados policiais, correndo atrás das notícias. Carregam consigo uma parafernália tecnológica: notebook com acesso wireless à internet, mais gravador, câmera fotográfica e filmadora (tudo digital). Apuram várias histórias por dia, tiram fotos (ou filmam) e, ato contínuo, publicam tudo no site do jornal. O recorte do "Post" acompanha um desses repórteres móveis numa de suas tarefas típicas: o lançamento de uma agenda comemorativa beneficente com fotos de atletas de uma cidadezinha.

O leitor há de perguntar: mas isso é notícia? Na era da globalização, o mote, por incrível que pareça, é ser online, mas cada vez mais local. Pelo menos é nisso que acreditam os editores da tal cadeia de jornais.

Apurada a "reportagem", o "mojo" mostrado pelo recorte entra no seu carro, abre o notebook e escreve a matéria ali mesmo, enquanto fala ao celular e toma uns goles da Coca-Cola instalada no vão entre a caixa de marcha e o painel de controle. A única luz é a do notebook. As costas devem doer...

Os diretores do jornal planejam ter pelo menos 14 repórteres móveis free-lance em breve, e a equipe permanente (de 30 repórteres) também vai começar a se deslocar para o novo esquema de trabalho. Além disso, aproveitando o esquema "faça-você-mesmo" que blogs, fotologs, videologs e a facilidade de acesso instantâneo da web permitem, a publicação investirá em matérias investigativas... investigadas pelos próprios internautas, acreditando que na prática seriam gerados "milhares de repórteres investigativos em vez de só três", como disse um executivo ouvido pelo "Post".

E também haverá um editor especializado em "construir audiências", para garantir que as histórias de maior apelo fiquem sempre no alto da página. Os comentários dos leitores serão estimulados em "message boards" (alguém aí se lembra do BBS?). E, claro, o ritmo da publicação online não pode parar. A pergunta é: deve-se publicar qualquer coisa, notícia genuína ou não? A turma da redação já está chiando: os textos dos "mojos" não passam pelos editores e acabam enfocando coisas desinteressantes (cadê a pauta?, dizem eles), e a pressão por alimentação ininterrupta do site já gerou pelo menos um constrangimento, quando um editor passou pela redação reclamando que o site não era atualizado há algum tempo e que era preciso publicar alguma coisa, fosse o que fosse.

Não é assim que se faz jornalismo, tenham certeza. Mas isso não é o pior - entre as mudanças previstas pelos "gênios" da cadeia de jornais, está a idéia de fazer repórteres acompanharem contatos de publicidade a clientes, para explicar melhor como seriam determinadas matérias de interesse... O que viola a condição básica e sagrada de qualquer imprensa livre: a redação aqui, o comercial lá longe.

Ler o recorte me causou calafrios. Alguém precisa dizer a esses caras que eles estão completamente malucos. De qualquer modo, acho que seria meio impossível ver um "mojo" aqui no Rio. Imagine. Carregar notebook, celular, filmadora e câmera digital para a rua. O título da primeira matéria do sujeito ia ser "Perdeu, tio!". E ela seria escrita à mão...

* * *

13-11-2006

EM DEFESA DA LIBERDADE

André Machado

Os criadores do projeto de lei que quase foi à votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado semana passada, e que exigia a identificação prévia dos usuários de internet para fazer qualquer coisa no ciberespaço, desde trocar emails até ir às compras, estão naturalmente convencidos de sua justeza e legitimidade. O relator do projeto disse ao GLOBO inclusive que não era verdade que a navegação dos internautas seria rastreada. Ora bolas, se não iria haver rastreamento, por que então a identificação obrigatória?

Eu escrevo muitas matérias sobre segurança da informação, e a preocupação com ela é legítima na era em que literalmente tudo é informação. Entretanto, é possível notar quando a legítima preocupação toma um desvio e se transforma em desculpa esfarrapada para iniciativas autoritárias. Aliás, até faz sentido o assunto vir agora à baila (antes da eleição, nenhum político se atreveria a falar nisso), num momento em que certos setores oficiais voltam ao velho vício (tão velho quanto a História) de tentar desacreditar o trabalho dos jornalistas.

Os autores do projeto bem poderiam dizer que ele n’est autre chose que la justice prompte, sévère, inflexible, isto é, que não passa da justiça imediata, severa, inflexível contra os malfeitores da web que tanto nos incomodam com phishing, spam, vírus e ciberfraudes. Esquecem-se de que foi exatamente com estas palavras que Maximilien de Robespierre - um político que passou à História com a aura de incorruptível - definiu a necessidade do Terror na Revolução Francesa. E o terror, em qualquer época, sempre transforma primeiro os cidadãos em reféns.

Consta que o projeto será apreciado por mais duas semanas. Mas deveria sê-lo por no mínimo mais dois anos, ou corremos o risco de termos nosso direito de ir e vir no ciberespaço confiscado para sempre, algo inadmissível. Nunca é demais lembrar o que escreveu John Perry Barlow na Declaração de Independência do Ciberespaço: "Governos do Mundo Industrial, (...) vocês dizem que há problemas entre nós [do ciberespaço] que precisam resolver. Usam essa alegação como desculpa para invadir nosso recinto. (...) Seus conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são todos baseados em matéria, e não há matéria aqui."

Vá lá, o próprio Barlow hoje admite que deve haver alguma governança na internet. Mas ela requer doses cavalares de prudência e bom senso. Não bastam boas intenções. Veja-se onde Robespierre terminou: ele queria a pronta justiça, mas acabou justiçado na guilhotina.

Esse tipo de projeto só poderia surgir numa era em que a informação ganha "valor agregado", embora de fato imaterial. Mas ainda há quem recorde os tempos em que os bits eram simplesmente passados de mão em mão: a turma do software livre e do código fonte-aberto. Semana passada, um artigo na Zdnet dizia que o mundo ainda não está preparado para o GNU/Linux, porque faltam jogos, suporte e há "sabores" demais do sistema operacional do pingüim. Mas há que existir uma alternativa a um mundo com apenas um sistema. As pessoas precisam ter a chance de escolher, experimentar e enveredar por bits diferentes. Viva a diferença.

Se o mundo open-source não fosse importante, a Microsoft não teria fechado o recente acordo com a Novell, para melhorar a interoperabilidade do Windows com o Suse Linux. Nem a Oracle teria entrado no jogo, oferecendo suporte ao Red Hat Linux. Os gigantes estão muito atentos à comunidade aberta. Que, no entanto, deve permanecer aberta a todo custo. Ela pode ser o último bastião contra o "valor agregado".

21.12.06

Este Guardião deseja um feliz Natal a todos. Que lembremos o significado real desta celebração, que é o amor em todas as suas formas, e não o consumo em todas as suas formas...

20.12.06

Sobre este aumento INDECENTE dos nossos parlamentares: o subsídio que eles hoje ganham (de R$ 12 mil) já é um abuso. Na verdade, deveriam ganhar metade disso. Talvez assim se candidatassem somente as pessoas com real interesse em contribuir para melhorar o país.

E os caras deveriam passar pelo menos um mês por ano vivendo com salário mínimo, tendo que pegar ônibus para ir ao trabalho e comendo mal.

Esse papo de que "temos que ganhar bem para ter independência" é de uma abjeção quase indescritível. Ética é um valor pessoal, não se pode medir por bens materiais. E ponto!

16.12.06

Ain't it funny how the time slips away
'Cause now I'm leavin' and I wish I could stay
People wonder why they don't get a chance
They wait for music but they don't get to dance
Mmm, well now I know when my work is through
I'm gonna be with you

(Paul Stanley, "Goodbye")
Oração da crise de meia-idade

(Escrita por Robert Wilde para sua jovem musa em 1886)

Ó Ponce de Léon, ensina-me o caminho até tua fonte: porque tudo que desejo é ter vinte e dois anos e um mundo a conquistar. Mas do mundo não precisarei -- troco-o de bom grado por um beijo, um só beijo, da linda Circe que enfeitiçou todas as artérias pulsantes de meu corpo para que pulsem só por ela.
Mais uma sessão de violão e cantoria ontem com o grande instrumentista Manoel e a turma no Baixo Globo. Desta vez aproveitei para tocar "Light my fire" e "Roadhouse blues", dos Doors.

13.12.06

"An idea is a greater monument than a cathedral."

(Henry Drummond, no filme "O vento será tua herança")

8.12.06

Eu já tinha recebido de presente de aniversário de minhas amigas meu musical favorito, "My fair lady", baseado na peça "Pigmalião", de Bernard Shaw. Mas hoje, ao chegar ao trabalho, minha musa Bárbara Veloso me presenteou com o DVD de "Em algum lugar do passado", meu filme favorito de todos os tempos (o livro é igualmente primoroso). Estou transtornado de emoção até agora.

5.12.06

Em tempo: este blog fez cinco anos de vida no dia 30. Um brinde à longevidade ;-)
E por falar em levar um som (veja o Cadafalso I), na última sexta fomos ao tradicional Galeto, aqui perto do jornal, e nosso coleguinha Manoel estava tocando um violão por lá. Acabei dando uma canja, entre vários outros violeiros que estavam na área, e foi muito divertido. Até sacudi a poeira do violão lá em casa no fim de semana e treinei um pouco. Yes!

27.11.06

Estou lendo o sétimo volume da série "Operação Cavalo de Tróia", do J. J. Benítez, que conta a viagem no tempo até a época de Jesus empreendida por dois cientistas americanos. A história é fascinante, até pela pesquisa científica, geográfica, médica e histórica feita pelo autor sobre o mundo do Oriente Médio nos anos 25 e 30 d.C.. Só me preocupa o fato de a trama nunca chegar ao fim. Benítez não é novinho, e espero que ele não demore a pôr um ponto final na história. A cada volume publicado, há um hiato de vários anos. É de arrancar os cabelos.
Como eu previa, minha tia-avó passou desta para a melhor, há alguns dias. Que descanse, pois você merece, querida.

21.11.06

Este ano está sendo um duro teste para mim. Perdi meu pai e mais dois tios num espaço de seis meses. Agora, minha tia-avó (a coisa mais parecida com uma avó que tive) está num CTI. Estou preocupado com minha mãe, cujos nervos estão em pandarecos.

Nessas horas, bem que poderia haver alguma coisa capaz de revestir nossos próprios nervos -- algo como um titânio psicológico. Se bem que é nos meus escritos que minha dor costuma se depositar.

14.11.06

Don't want your body
Don't want your expertise
Don't want your reasons
Don't want to believe

Just want your kiss
your honey-coloured
breathtaking
larger-than-life
kiss

in order to be alive.
She turns and looks a moment in the glass,
Hardly aware of her departed lover;
Her brain allows one half-formed thought to pass:
“Well now that’s done: and I’m glad it’s over.”

(T. S. Eliot)

13.11.06

Minicontos do desconforto -- 87

Émile -- Eu estou definitivamente velho: não sei mais expressar o meu amor.

François -- Talvez você seja mais feliz agora. O amor é uma doença que nenhum antibiótico cura.

Émile -- Não seja cínico.

François -- Não estou sendo. O amor é como uma síndrome imunológica: destrói todas as suas resistências. Aliás, é pior: no caso do amor, um simples olhar de desprezo pode matar.

Émile -- Então já estou morto. Ela disse que me odeia, e tudo o que eu fiz foi cair a seus pés e me declarar.

François -- Grande burrice. É assim mesmo que a gente fica comendo na mão do outro. O desprezo vem quase imediatamente. Tripudiar é irresistível. Você nunca aprendeu isso?

Émile -- Quem ama esquece tudo o que aprendeu. Repete os erros, porque quando se ama é sempre a primeira vez.

François -- Tolice. Jogar é preciso.

Émile -- Jogar leva apenas ao sexo. Jogar é um ato racional. O amor prescinde de jogos...

François -- Quá quá quá. Coitado... Além disso, você não continua namorando Cosette? Com que então declarou amor a outra?

Émile -- Eu gostaria de um pouco mais de romance em minha vida.

François -- Mas para isso é preciso se mexer, rapaz. Não dá para ter as duas ao mesmo tempo.

Émile -- Quem disse? Por que não posso amar as duas diferentemente? E elas a mim? Cosette e eu não estamos em crise, é algo consolidado, daí a previsibilidade. Já no caso de minha amiga, o amor é fresco, perigoso, cheio de acidentes geográficos. Acho até que um poderia alimentar o outro.

François -- E depois sou eu o cínico...

Émile -- De qualquer modo, tudo emperra na expressão. Como expressar isso nessa sociedade provinciana e careta? Vai tudo levar a um inferno permanente, é o que vai acontecer. E ela já me odeia, não adianta mais nada...

François -- Lamento, meu amigo. Lamento mesmo.

Émile -- É. Só tem um jeito. Pede aí.

François -- É. Garçom, mais dois uísques. Duplos.

6.11.06

"Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido às saias dela, mas não me ocorria nada entre nós que fosse deveras secreto. Antes dela ir para o colégio, eram tudo travessuras de criança; depois que saiu do colégio, é certo que não estabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no último ano era completa. Entretanto, a matéria das nossas conversações era a de sempre. Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor - outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ela me passava a mão pelos cabelos, dizendo que os achava lindíssimos. Eu, sem fazer o mesmo aos dela, dizia que os dela eram muito mais lindos que os meus. Então Capitu abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabelos realmente admiráveis - mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia. alguma frase, algum gesto. Também eu os contava. Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos que os meus, eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se cor de pitanga."

(Machado de Assis, "Dom Casmurro")

1.11.06

Minicontos do desconforto -- 86

Aproveitou a noite para curtir o especial de velhos filmes de terror do canal a cabo. Estavam lá todos os seus monstros queridos da infância: Drácula, a criatura de Frankenstein, a múmia, o lobisomem.

No dia seguinte, o despertador tocou às 5h45min, ele se vestiu às 6h e chegou ao trabalho às 7h. Fez contas até as 12h, almoçou até as 13h, fez mais contas até as 18h. Chegou em casa, jantou em silêncio olhando para a parede às 20h e viu o jornal da televisão. Dormiu às 22h.

Em outra dimensão, alguém assistia a tudo numa tela flutuante no ar.

-- Que filme chato -- comentou um anjo.

-- Não. Este é o verdadeiro filme de terror -- murmurou outro.

25.10.06

Moçada, eu estava de férias, por isso a longa ausência. Mas estou de volta para novos posts.

10.10.06

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18-9-2006

DE CEM ANOS A UM SEGUNDO

André Machado

A computação do futuro será a do invisível. A lei de Moore - que diz que o processamento dobra a cada ano e meio - será definitivamente derrubada por ela. Estamos falando da computação quântica, para onde nossos bits de cada dia caminham a passos largos. Hoje, em grande parte, essa computação é teórica, resolvida em equações complicadíssimas, mas seus processos já estão sendo usados em áreas como cálculo, busca e criptografia.
Mas como é esse tipo de computação? Haverá algum dia um computador quântico semelhante aos nossos PCs de mesa ou notebooks? Existem complicações para chegarmos a isso, porque um computador realmente quântico só funcionaria a contento seguindo as leis da física de partículas, e não sendo jamais perturbado pela natureza. Esse tipo de isolamento total é praticamente impossível, por isso não espere ver um computador quântico na próxima promoção das Casas Bahia.
Por outro lado, a passagem da computação para o mundo sub-sub-submicroscópico é uma questão de tempo. Segundo o físico Jean Faber, especialista no assunto, doutor pelo LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica) e pós-doutorando da COPPE/UFRJ, a lei de Moore também pode ser entendida como o número de átomos necessários para representar um bit.
- Na década de 20 você tinha um monte de átomos para representar um único bit - diz Jean. - Mas com o passar do tempo são necessários cada vez menos átomos para representar um bit. Um dia, um só átomo representará um bit. É o que se espera. E aí teremos que usar a mecânica quântica para manipular esses átomos-bits. Que nada mais serão do que bits quânticos.
A computação quântica desafia a física clássica, em que já estamos acostumados a compreender quase inconscientemente conceitos como gravidade, inércia e etc. Se você balança uma árvore, algo vai cair lá de cima; se bate num carro, ele será empurrado e assim por diante. No mundo quântico, onde estamos falando de elétrons ou pedacinhos deles, tudo é diferente.
No nosso computador de casa ou do trabalho, tudo funciona exatamente como Alan Turing, o inventor do computador clássico, imaginou 70 anos atrás. Todas as tarefas são traduzidas em bits, que obedecem ao velho código binário: ou representam zero, ou representam 1. Tudo o que fazemos no computador pode ser representado por sucessões intermináveis de zeros e uns misturados. Outra coisa: a lógica do PC clássico é chamada de irreversível, porque ela produz um desgaste físico, dissipando calor no processamento - ou seja, a cada operação, perde-se alguma informação na natureza. Por isso nossos PCs precisam de ventiladores em cima do processador.
Segundo Jean, o que diferencia os bits quânticos dos bits clássicos são duas características especiais:
1) Eles podem representar zero, um ou zero e um ao mesmo tempo .
2) Eles podem criar uma ligação entre si de modo que, se um bit for mexido, seu "irmão gêmeo" seja mexido também, mesmo que esteja no Japão ou em outro planeta. É uma espécie de sintonia (chamada emaranhamento quântico). Como se os dois bits fossem um.
Essas loucas propriedades têm um efeito a-b-sur-do na velocidade do computador. Existem contas matemáticas complexas que os PCs clássicos demoram muito a fazer. (Elas, inclusive, são a base da criptografia clássica: você cria uma chave ou senha secreta tão longa que o computador levaria anos para decifrar.) Processos matemáticos como a fatoração de números primos podem levar cem anos para serem concluídos num PC clássico. Com os bits quânticos turbinados e seus estados extras, contas assim podem ser feitas em segundos. A criptografia fica praticamente inviolável. E a busca enxerga mais dados a um só tempo.

* * * * *

21-08-06

NÃO É SÓ PARA OS TÉCNICOS

André Machado

Distribuições de Linux, existem muitas. Algumas formaram comunidades tão fortemente unidas no Brasil que quando seus mantenedores lá fora têm algum problema, passam a responsabilidade para a turma daqui. É o caso do Slackware, cujos valorosos membros no Brasil, entre eles o analista Bruno Collovini, fazem um trabalho de desenvolvimento tão certeiro que chamam a atenção de seus pares internacionais.
As comunidades open-source de modo geral se destacam pelas características técnicas de seus integrantes, embora isso não seja uma regra. As Linuxchix brasileiras, em geral representadas pela bela e bem-articulada Sulamita Garcia, têm por meta afirmar a participação da mulher no movimento open-source, seja atuando no desenvolvimento ou simplesmente contribuindo como usuárias.
A prova de que não é preciso ser um técnico nem escovar bits para participar de uma comunidade de software aberto talvez esteja na trajetória de David Barzilay, embaixador brasileiro com assento no comitê internacional da distribuição Fedora Core. Curiosamente, a relação de David, publicitário de formação, com o Fedora - coração open-source do código que alimenta o Red Hat Enterprise Linux - começou na longínqua Brisbane, na Austrália. Foi lá que ele começou a trabalhar no projeto de tradução da distribuição para o português do Brasil.
- Dessa maneira, intensifiquei relações com a comunidade Fedora, e as pessoas descobriram que nem só a turma mais técnica pode colaborar com o software aberto - me disse David.
A história toda levou à fundação de uma lista (hoje com quase 300 membros) ligada à tradução de softwares e manuais do Fedora e acabou por transformar David num dos nove embaixadores do comitê global da distribuição - o único brasileiro do grupo. Esses embaixadores ajudam a difundir o uso do Fedora ao redor do mundo e fomentam a criação de comunidades dedicadas a trabalhos variados, desde o desenvolvimento de programas e funções até desenho e tradução de interfaces, por exemplo.
- O comitê se reúne online semanal ou quinzenalmente, sempre via IRC - conta David.
Depois de cinco anos na Austrália, ele está de volta ao Brasil, onde assumiu na Red Hat a gerência de marketing e relacionamento com a comunidade. E se prepara para o lançamento do Fedora 6, marcado para o mês que vem. O destaque do novo Fedora deverão ser suas tecnologias de virtualização, que permitem simular mais de uma CPU no computador e rodar outros sistemas junto com o Linux. Elas terão um gerenciador com interface gráfica. A versão 6 virá com os novíssimos ambientes gráficos para a área de trabalho Gnome 2.16 e KDE 3.5.3, atualizador de pacotes com ícones para informar sobre updates disponíveis e mais recursos para rodar programas em Java. O novo Fedora também poderá rodar nos Macs com processadores Intel.
Para David, o diferencial do Fedora é que boa parte do que é criado para ele entra no seu core, não ficando apenas como um anexo. E o fato de que o sistema é a base do Red Hat Enterprise Linux faz com que ele seja continuamente testado no mundo corporativo, contribuindo para futuras melhorias, num círculo que se realimenta ad aeternum.

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Uma coisa a notar nas séries de ação da TV hoje é o uso cada vez maior da tecnologia nos episódios. Em "24 Horas", seriado da Fox cuja quinta temporada chegou ao fim semana passada, a tendência chega ao ápice. As redes de segurança e monitoramento da unidade contra-terrorismo da série são poderosíssimas e o celular do agente Jack Bauer (vivido por Kiefer Sutherland) só falta baixar santo - recebe até plantas arquitetônicas com uma facilidade estonteante. Haja banda larga sem fio. E a bateria nunca acaba. Por outro lado, os computadores da série "Lost" (do AXN), cuja segunda temporada termina hoje, parecem híbridos de mainframes jurássicos e dos primeiros PCs, com telas pretas, letras verdes e impressões com jeito de matricial. Aliás, as folhas de impressão têm... papel importante no episódio de hoje.

1.10.06

Mais sobre o lançamento no Cadafalso I.

Aliás, a Cora fez um post sobre o lançamento em seu blog. Aqui.

E fez esta foto aí de cima.

Minha querida Cora Rónai, eu e Alexandre Freire no lançamento do "Como blindar seu PC", na Letras e Expressões do Leblon.
Moçada, esta foi mesmo a eleição mais desanimada de todas em que estive. Até o tempo em Nikiti City e no Rio, cinzento e lúgubre, combinou com o estado de espírito de todos.

25.9.06

Correndo atrás da divulgação do livro nas últimas semanas. Hoje saiu reportagem no caderno Info etc, do Globo, e foi postada uma entrevista em vídeo na parte de Tecnologia do Globo Online.
Espero todos no lançamento, que será sexta-feira na Letras e Expressões do Leblon, a partir das 19h. O convite pode ser visto aqui.

6.9.06


Atenção, moçada!

Vem aí meu novo livro, escrito em parceria com o super-expert em segurança da informação Alexandre Freire. Olha a capa aí em cima. Está quase saindo do prelo. Mas já tem site, inclusive com links para compras antecipadas. Fica aqui, e e está quase pronto, faltando alguns detalhes. O Alexandre construiu todo o site, com muito capricho.

O lançamento será dia 29 de setembro, na Letras e Expressões do Leblon. Boto o convite aqui quando chegar mais perto.




Mais fotos de Berlim: na escadaria do Reichstag (hoje Bundestag); a catedral da cidade, a Berliner Dom, e sua cúpula vista de dentro (acima); e o monumento aos escritores do país.

Outras fotos, no Cadafalso I.

20.8.06

Minicontos do desconforto -- 85

Sonhou viajar no tempo para pedi-la em namoro de novo, para espantar o mofo do casamento. Aí um dia acordou vinte anos antes, na velha cama no apartamento dos pais. Olhou o relógio: estava quase na hora. Vestiu-se correndo, pegou suas coisas e tomou o ônibus para o bar onde a conheceria.

E ela estava lá, num vestido amarelo, as pernas lindas e longilíneas, exatamente como a vira pela primeira vez. Lembrou-se que estava com um amigo e tinha bebido um bocado de chopes antes de ela passar por sua mesa e pedir-lhe fósforos. Ligou para o amigo. Ele estava em casa, e não demorou a chegar.

Estava tudo pronto.

Então, quando ela passou, de pilequinho, pedindo os fósforos, percebeu que os esquecera junto com o maço de cigarros em cima da escrivaninha. Tentou responder qualquer outra coisa, mas era tarde -- ela se fora.

Passou os vintes anos seguintes sozinho e virou um rabugento já na meia-idade.

19.8.06

Para comemorar o dia dos pais, este mês, fui com a família ver "Piratas do Caribe 2". Adorei: nada como um filme pipoca assumido e bem feito. Achei inclusive melhor que o primeiro. E a gente já sai do cinema esperando o terceiro. Bom demais.

8.8.06

Tenho me sentido cansado ultimamente. Minhas férias estão próximas (em outubro), mas depois que a gente começa a trabalhar as férias nunca são suficientes.

3.8.06

"Representar tem tudo a ver com sinceridade. Se você conseguir fingi-la, chegou lá."

(George Burns)

26.7.06

Minhas três colunas mais recentes no Info Etc.

De 24 de julho:

TECNOLOGIA É SÓ UM MEIO

André Machado

Proferi este mês uma conferência sobre tecnologia e comportamento no Business Club One, no Centro do Rio. Aproveitei para relembrar a época em que escrevia estas mal traçadas nas chamadas máquinas "de tração animal", ou máquinas de escrever. Como o computador mudou nossas vidas desde então! Entre o momento em que a notícia surge e o momento em que chega ao leitor, hoje o intervalo de tempo é quase inexistente. A vertiginosidade em que vivemos envolvidos nesta era de pouca reflexão me fez pensar no papel da tecnologia e o que ela representa para nós, personagens e testemunhas da Revolução da Informação.

Na conferência, eu disse que uma coisa a lembrar quando falamos de tecnologia é que ela não pode ser transformada em vida. O que quero dizer com isso? Que toda tecnologia é um meio para se chegar a um fim, nunca o fim em si. A internet é a maior ferramenta de comunicação jamais criada pelo homem, mas ainda assim permanece uma ferramenta. Embora haja nela mundos virtuais onde podemos viver vidas diferentes das nossas, como um role playing game (RPG) em tempo real, elas permanecem virtuais; a vida real, por seu lado, é bem outra coisa.

Um fenômeno recente que vejo se abater sobre muitas pessoas é a mania de filmar e fotografar tudo o tempo todo. A facilidade cada vez maior de acesso a câmeras digitais, em máquinas fotográficas propriamente ditas ou em PDAs e telefones celulares, criou uma obsessão com o registro ao vivo de tudo e de todos. Ouso dizer que, se isso continuar assim, dentro de algumas décadas não precisaremos mais de nossa memória inata. Porque as pessoas estão se esquecendo de olhar as coisas com seus próprios olhos e preferem a eles a realidade das lentes digitais. Ninguém mais pára para apreciar um crepúsculo, para observar as emoções dos convidados de uma discreta cerimônia de casamento. Não; todos levantam suas câmeras e telefones celulares e fotografam sem parar, deixando de acompanhar o momento e depois elaborando-o na própria memória, que é, ao menos para este humilde escriba, parte do que faz a História com H maiúsculo ser escrita.

A tecnologia deve ter o lugar que merece em nossas vidas: o de utilidade. Certamente ela ajuda a mudar comportamentos e gerar novas formas de organização, mas ainda assim o faz como uma ferramenta. E, de qualquer forma, encantar-se com uma tecnologia específica e aferrar-se a ela é, na prática, viver no passado, porque as tecnologias mudam o tempo todo, ainda mais agora. André Kischinevsky, diretor do Infnet, tem a teoria de que no futuro todas as coisas serão virtuais, e que não haverá mais objetos, apenas formas impalpáveis 3D e redes neurais conectadas a a elas.

Apesar desse caminho em busca do virtual, a vida real continua a ser bem mais do que zeros e uns, sim ou não, preto ou branco. É por isso que se estuda, no Massachusetts Institute of Technology e em outros lugares, a chamada computação afetiva, que quer ensinar sistemas de informação a entenderem melhor as reações humanas, e a se comportarem de acordo com elas.

A computação afetiva quer criar uma relação mais íntima com o usuário. Porque, em última análise, são as máquinas que realmente têm que nos entender, e não o contrário. A chamada usabilidade de sistemas e programas ainda tem um longo caminho pela frente. Eu sempre digo que, quando tivermos com o computador a intimidade que temos com a televisão e a geladeira, nossos problemas acabarão.

Contudo, depois de refletir sobre esses temas, fui à exposição Interface Cibernética (veja a capa) em São Paulo e percebi que, ao menos no campo da arte, os bits e bytes estão virando mais do que ferramentas; eles podem se transformar nas próprias obras de arte, em certo grau. Os artistas - sempre à frente de seus contemporâneos, em todas as épocas - perceberam que a relação de utilidade com a tecnologia poderia ser subvertida e não hesitaram em criar obras e instalações para celebrar novos relacionamentos entre nós e o software, o hardware e tudo em que podem se transformar. Vai dar uma nova conferência, sem dúvida.

* * *

De 26 de junho:

OS CAPOEIRA COMMONS

André Machado

Em 2003, cobri o evento iLaw, que trouxe ao Rio alguns próceres do meio acadêmico americano e os fundadores do Creative Commons, movimento criado em 2002 pelo professor Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, com vistas a flexibilizar formas de direito autoral com licenças alternativas ao velho copyright. O evento atraiu poucos jornalistas, mas foi um divisor de águas para quem está de olho na evolução da vida digital. Agora, no fim de semana, acabou de acontecer também no Rio o iSummit, evento máximo da turma dos Creative Commons. E dessa vez veio gente do mundo inteiro - 49 países estavam representados no evento, que atraiu 70 jornalistas de diversas procedências. E o mundo Creative Commons não é mais alternativo. Virou mainstream. Na abertura do iSummit, o mesmo Lawrence Lessig contou que de seis meses para cá as licenças Creative Commons (CC) ultrapassaram 140 milhões no planeta (a última estatística dava conta de 53 milhões). A maior parte ainda consiste em textos e blogs com conteúdo compartilhado mais livremente, e em segundo lugar estão as imagens - são mais de 50 milhões com licenças CC só no Flicker.

A coisa está fervendo tanto que a própria Microsoft já criou uma opção no Office para apor uma licença Creative Commons num documento (do Word, por exemplo). E existem várias ramificações do movimento na internet, cada vez mais fazendo de quem consome conteúdo seu próprio autor.

- Na verdade, as pessoas não querem mais só consumir; querem interagir, compartilhar, improvisar coisas - disse Joi Ito, presidente do iCommons, entidade que e fomenta comunidades CC colaborativas.

Uma das ramificações é a Revver, onde se pode criar vídeos em licenças CC e garantir que o autor receba um "dindim" toda vez que o vídeo é assistido (de graça) na web. Isso é feito através de uma tag que monitora o vídeo na rede, e o dinheiro vem via acordos com anunciantes, dividido meio a meio entre site e autor. As Dixie Chicks, nos EUA, já fizeram um vídeo "revverizado".

Outro projeto é o Dotsub.com, que permite legendar filmes compartilháveis em qualquer idioma, com ferramentas adaptadas a browser fornecidas pelo próprio site. E tem ainda o Eyespot, com uma trilha de vídeo online que se pode misturar os frames à vontade, criando um filme com licença alternativa no fim do processo.

O Brasil não está de fora desse processo. Aqui, o Creative Commons é capitaneado pelo advogado Ronaldo Lemos, do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV. E o ministro da Cultura, Gilberto Gil, é o artista brasileiro mais antenado com a nova realidade dos direitos autorais. No evento, ele reafirmou a intenção do governo de atualizar e modernizar as leis sobre propriedade intelectual no país, que segundo Ronaldo vão muito além do que a OMC pede e protegem os interesses privados.

- A Índia usou a flexibilidade dos acordos que a OMC prevê sobre o tema para atrasar a criação de patentes nocivas para o país e hoje tem a maior indústria de remédios genéricos do mundo. Aqui, a lei é muito mais conservadora - disse.

Gil, que mesmo político fala como artista e intelectual que é, evocou Fernando Pessoa e seus heterônimos para fazer uma metáfora da multiplicidade do ciberespaço e comparou a nova era que vivemos ao jogo de capoeira, cujos movimentos mudam o tempo todo e onde de repente um perdedor pode conquistar vitórias.

- Talvez porque eu seja de Salvador, um porto, onde os mundos e as culturas se encontram, quero conectar as diferentes idéias e fazer o mundo vibrar como um berimbau - disse, lembrando que o tropicalismo tem tudo a ver com essa onda.

É certo que ainda veremos muita água rolar debaixo da ponte, até porque somos um país em desenvolvimento, e temos de vencer primeiro a barreira da inclusão digital e levar tecnologia a todos antes de poder converter a mentalidade do establishment. Mas é um consolo perceber que cabeças pensantes do Brasil saem na frente e apreendem a necessidade de jogo de cintura quando se trata do universo da internet. Talvez seja lícito chamá-las de "capoeira commons".

* * *

De 29 de maio:

LINUXWORLD: NA CASA DOS PINGÜINS

André Machado

Aconteceu semana passada em Sampa a primeira LinuxWorld brasileira. Este é o grande evento do mundo open source, enquanto o FISL (Fórum Internacional Software Livre) de Porto Alegre é o grande evento do software livre. Explico: embora os dois conceitos tenham interseções, o mundo open source é mais centrado na tecnologia em si, em criar sistemas e programas melhores (e de código aberto), enquanto os paladinos do software livre pensam em mudar o mundo, idealizando uma sociedade mais justa em que um dos primeiros passos seria o compartilhamento da informação.

O que um Richard Stallman, da Fundação Software Livre, tem de inflexível, o mentor do mundo open source, John "Maddog" Hall, presidente da Linux International, tem de político. Maddog pode ser considerado o grande embaixador do Linux (ou GNU/Linux) no planeta, já que o criador do sistema, Linus Torvalds, é um tanto tímido, especialmente em sua relação com a mídia.

Maddog fez um dos melhores keynotes do evento - que estava repleto de executivos e pesos-pesados de Intel, IBM, Red Hat, HP, Itautec, Novell, além de vários projetos Linux: Debian, Mandriva, BrOffice, 4Linux e muitos outros. Com mais de dois mil visitantes, a LinuxWorld provou que o sistema representado pelo pingüim Tux está crescidinho e chama a atenção do mercado.

Mas voltemos ao Maddog. Ele comentou que vai transformar a Linux International numa associação mais voltada para usuários finais e programadores do que para empresas.

- As empresas certamente ajudam a impulsionar o open source, mas também se preocupam com seus negócios - me disse Maddog. - Os usuários entram nessa porque realmente têm interesse, gostam da coisa. E é isso o que o software livre e aberto é, em última análise.

Do alto de suas barbas brancas, o veterano programador lembrou o quanto estamos viciados em nomes de soluções e esquecemos para o que elas servem. É o equivalente a chamar "fotocópia" de "xerox".

- Não diga que você precisa do produto de uma empresa X - sentenciou ele. - Diga que precisa de um software para editar texto ou fazer um banco de dados.

Ele não pregou a troca de sistema pela troca de sistema. Disse que "se você tem um sistema trabalhando bem, não o converta". E lembrou que se pode começar comendo pelas beiradas (no caso das empresas, em novos projetos), com programas abertos. Estão aí Evolution, OpenOffice e Gimp, só para citar alguns.

Outro destaque do evento foi a Red Hat, que anunciou oficialmente o início de suas operações no país e contratou o mantenedor do kernel do Linux, Marcelo Tosatti. Tosatti será responsável por adaptar o Linux para o laptop de US$100 do Nicholas Negroponte, em que a Red Hat investe.

- Minha tarefa será tornar a interface mais simples e mais fácil que a dos desktops - contou ele.

Uma interface mais fácil para os usuários é realmente o grande desafio do Linux para o desktop. Esse desktop deve chegar primeiro nas estações de trabalho. Por exemplo, pelas mãos da Novell, que lançou a versão 10 de seu Suse Linux Enterprise. Poderoso, o sistema comporta vídeo e gerenciamento avançado de arquivos e janelas - em dado momento da demo, Guy Lunardi, gerente de produto da Novell, abriu seis janelas e arrumou-as numa espécie de cubo mágico, que podia ser manipulado à vontade. Bom, à vontade no notebook de Guy, com 1Gb de memória...

Para o usuário final, mesmo, a grande aposta presente no evento era a nacional Insigne, que tem um Linux montado para facilitar a vida de quem nunca viu um pingüim. É o Linux que mais anda por aí nos computadores do varejo, inclusive os usados no projeto de computador popular no governo. A Insigne rearrumou a janela Comece Aqui, presente no Linux, e levou os ícones dos programas básicos para dentro dela. A empresa criou agora uma versão "live"do Insigne, que vou testar.

Por fim, a porção mulher do Tux está crescendo. As meninas do movimento LinuxChix.Br, que mexem com o sistema, já são mais de 300 e têm encontro marcado em Florianópolis, em setembro.

21.7.06

Vi a exposição do Degas, no MASP. Muito bem montada. Mas o mais legal foram as gravuras indecentes que Picasso fez de prostitutas aprontando o diabo enquanto o Degas, um tímido, observava de um canto, sempre com olhar espantado. A série foi batizada de "Degas voyeur" e é sensacional.

Também aproveitei para curtir o acervo do museu. A tela de Corot que retrata uma cigana com bandolim me hipnotizou.

Li a biografia de D. Pedro I escrita com leveza e maestria pela Isabel Lustosa. O imperador é descrito por ela como a verdadeira identidade de Macunaíma, o herói sem caráter. Mas, apesar das muitas vaciladas, deu ao Brasil a Independência, manteve-o coeso e ainda conseguiu derrotar o irmão usurpador em Portugal e botar sua filha no trono. E tudo isso num espaço de 12 anos, entre 1822 e 1834. Consumiu-se rápido, o homem, morrendo com 36 anos no mesmo quarto onde nascera.

É impossível parar de ler o livro. O personagem é muito fascinante. Mas dá para perceber que os verdadeiros estadistas ao lado dele eram José Bonifácio e D. Leopoldina. Se tivessem assegurado maior influência sobre D. Pedro, nossa história seria diferente. E talvez o Primeiro Reinado não tivesse acabado tão rápido.

12.7.06

Farewell, Syd Barrett. May you shine on like a crazy diamond wherever you are.

6.7.06

A final França x Itália está mais com cara de disputa entre culinárias do que de partida de futebol.

30.6.06

Eu pensei em traduzir este provérbio búlgaro que achei num site para o português, mas em inglês ele está afiadíssimo. É sobre a oportunidade.

"Seize opportunity by the beard, for it is bald behind."

Não é legal?

28.6.06

Estou relendo o "Retrato de Mr. W. H.", de Oscar Wilde. A história-ensaio gira em torno da identidade misteriosa do W.H. do título, a quem os sonetos de Shakespeare teriam sido dedicados.

Wilde escreveu o texto e, alguns anos depois, ampliou-o. O manuscrito original sumiu no leilão que se seguiu a sua prisão, em 1895, em Londres, e reapareceu décadas depois nos Estados Unidos. A versão ampliada foi publicada em suas obras completas.

24.6.06

O único, o inimitável Maloca Mendes virou editor do caderno de informática de O Dia. Isso é que é uma boa nova. O Guardião do Cadafalso deseja a ele muitas boas matérias na nova empreitada.

23.6.06

O Brasil ontem foi muito bem no jogo contra o Japão. Até que enfim o time desencantou. E já era hora, pois vai começar a fase do mata-mata na terça, contra Gana.

20.6.06

Mais fotos do Rio Negro: as duas primeiras de Henrique Martin, a última do meu celular.



15.6.06



Um trecho de igapó (a floresta amazônica inundada), para ilustrar o que falei no post anterior. A beleza da região ficou ainda maior com o dia perfeito em que navegamos pelo rio Negro. A bela foto é também de Henrique Martin.


Fotografando o encontro das águas dos rios Negro e Solimões, perto de Manaus. A visão é inesquecível. Os rios estavam na época da cheia, e tanto as margens quanto as ilhas no meio do caminho só exibiam praticamente as copas das árvores. A foto é do coleguinha Henrique Martin.

11.6.06

Fim de semana de plantão. Hoje, então, trabalhei desde cedo num capítulo do novo livro techie que estou finalizando e, agora, vim para o jornal. E no ônibus uma galera voltando da praia...

10.6.06

Decidi botar novo layout aqui. Já estava na hora. Agora os dois Cadafalsos ganharam uma identidade visual entre si, o que faz mais sentido. Nada como arrumar a casa de vez em quando.

9.6.06

Meu violão e minha guitarra estão encostados há um bom tempo num canto da sala lá de casa; é como uma parte adormecida de minha existência. E meus parceiros favoritos de som, Maloca e Gustones, andam longe e tão cheios de trabalho como eu. Assim que terminar meu novo livro techie, este mês, vou tentar armar uma reunião do Aerosilva. Viver sem rock e rhythm and blues é um pecado capital para um fiel dos três acordes como eu.

É como canta o David Coverdale:

Give me a rock an' roll band
With a mean an' dirty blues guitar!

E também:

I got a juke box heart
Full of honky tonk rhythm an' blues!

26.5.06

Eu parei para ver, outro dia, o documentário do Scorsese sobre Bob Dylan, "No Direction Home". É absolutamente sensacional. Imperdível, mesmo com quase três horas de projeção. Ajuda a entender um pouco os anos 60 nos EUA, o auge do Village em Nova York... Tem os beats falando, Allen Ginsberg, por exemplo. E o próprio Dylan pontuando entre as seqüências históricas e musicais.

Uma porrada. E tem os primeiros shows de Dylan com a The Band, afiadíssima. A guitarra de Robbie Robertson esmerilhada, os solos como uma relação sexual prestes a chegar ao orgasmo.

E todo mundo vaiando, dizendo que Dylan eram um judas por largar o folk acústico e cair de boca na eletricidade. O artista foi corajoso ao romper com o que estava ficando meio estereotipado e abraçar um novo caminho. Todo artista tem que ter essa coragem. Mas poucos, depois que fazem sucesso e ganham dinheiro, têm.

E é como alguém no documentário fala: nos anos 60, não era a indústria que fazia o artista. O que ele tinha a dizer realmente importava.

Mas hoje, com a vida digital e a cultura livre, as vozes independentes se fazem ouvir uma vez mais. Se por um lado a tecnologia impulsiona a "música" eletrônica (à qual tenho horror, porque fere minha formação musical), por outro cria alternativas de edição e publicação. É um consolo.

5.5.06

Minicontos do desconforto -- 84

Tudo, absolutamente tudo nela era um clichê. Era insuportável vê-la falar frases inteiras chupadas da boca de gente medíocre, de livros medíocres, de filmes medíocres, de atores medíocres, de músicos medíocres, de namorados medíocres, de livros de auto-ajuda (chamá-los de medíocres é redundância).

Ele não agüentou. Um dia, resolveu telefonar para a Casa Branca.

-- George W., eu sei onde estão as armas de destruição em massa que vocês não encontraram no Iraque. Ah, sim, sei que era tudo mentira, mas no fim das contas elas existem aqui, insuspeitadamente. Manda uma força-tarefa aqui pro Rio de Janeiro, no condomínio *** na Barra.

-- Well, sir, but... armas num condomínio?

-- São armas de destruição em massa de paciência.

28.4.06

Moçada, vou estrear uma coluna no Info Etc da próxima segunda. Só queria
avisá-los, vai ser uma nova fase para mim. A coluna será mensal.

17.4.06

Trilha sonora de hoje:

Riders on the storms (Doors)
Rain (Cult)
Crying in the rain (Whitesnake)
Rainy days and mondays (Carpenters)
Chove Chuva (Jorge Ben Jor)
Chuva de prata (Gal)
Raindrops keep falling on my head (Burt Bacharach)
Lágrimas e chuva (Kid Abelha)
In the eye of the storm (Roger Hodgson)
The rain song (Led Zeppelin)

13.4.06

Um filme bom é aquele que você vê várias vezes e, a cada sessão, descobre um ângulo diferente na história. Ontem revi "Closer", filme de que gostei muito, e desta vez fiquei com a nítida impressão de que o dermatologista interpretado (magistralmente) por Clive Owen consegue manipular direitinho os outros três personagens do filme (interpretados por Julia Roberts, Natalie Portman e Jude Law).

Também é de Owen uma das melhores frases do filme. Respondendo à acusação de Law de que é frio e vê o coração humano apenas como um diagrama, o médico responde na lata algo como: "seu babaca, você já viu um coração humano? Parece um punho fechado, coberto de sangue!"

Uma coisa não mudou, entretanto, em "Closer". Natalie Portman rouba o filme e está um Tesão, assim, com T maiúsculo mesmo. A fala de sua personagem na exposição de fotos dizendo que as pessoas fotografadas estão todas tristes, mas as fotos tornam tudo bonito e é isso que importa para os "apreciadores idiotas de arte", evidenciando a relação meio que de sanguessuga entre a problemática personagem de Julia Roberts e os objetos de suas lentes, também é uma porrada.

7.4.06

To travel hopefully is a better thing than to arrive.

(Robert Louis Stevenson)

True hope is swift, and flies with swallow's wings;
Kings it makes gods, and meaner creatures kings.


(Shakespeare)

6.4.06

Verissimo sempre enfia a ponta de sua caneta na veia. Da sua coluna de hoje:

"(...) Os que hoje propõem a 'flexibilização' dos direitos dos trabalhadores conquistados em anos de luta (como os que os franceses hoje defendem nas ruas de Paris) babariam com o que veriam no século XIX: homens, mulheres e crianças trabalhando 15 horas por dia, sem qualquer amparo, e sem qualquer encargo legal ou moral, fora os magros salários, para seus empregadores."

Aqui no Brasil, onde o capitalismo ainda é totalmente selvagem, esse blablablá de livre negociação, fim de carteira assinada, contratos temporários, enfim, a tal flexibilização, tudo isso é conversa para boi dormir: as palavras elegantes escondem a involução das conquistas sociais, a regressão à barbárie (como se já não tivéssemos barbárie suficiente no país) e mais, mais, mais dinheiro para a turma já endinheirada, que nos olha de cima como se não passássemos de um monte de merda.

Eu esperava do atual governo, no mínimo, uma política salarial, coerente com o que o partido pregou ao longo de duas décadas. Mas os bancos nunca lucraram tanto, a galera da especulação financeira nunca esteve tão bem e nós, assalariados, somos como párias dentro de nosso próprio país. É uma vergonha!

E isso tudo sem falar da corrupção. Que, se não é nova e vem de outros governos (o que não a torna menos que inaceitável) é absolutamente imperdoável para quem sempre se proclamou sacerdotisa da ética.

Eu mal posso esperar a hora da eleição. Que os traidores do povo tenham seu próprio cadafalso dentro das urnas.

Eu não vou anular meu voto, que é minha única arma.

4.4.06

A vida começa aos quarenta. Começa a degringolar.

29.3.06

Moçada:

Ganhei o prêmio SecMaster de Melhor Contribuição Jornalística na área de segurança da informação, na categoria Júri Popular. A premiação foi ontem à noite em São Paulo. É a primeira vez que o evento Security Week inclui a imprensa em sua premiação, e é claro que fiquei muito feliz de estar entre os vencedores.

A todos os que me deram a honra de seu voto, meu muito obrigado.

26.3.06

Ah, que bom acordar com a chuva num domingo de manhã. Especialmente num domingo em que você tem que dar plantão.

* * *

Ontem vi o filme "O último portal", baseado no livro "O clube Dumas", de Arturo Pèrez-Reverte. O livro é muito melhor. Até porque a direção de Roman Polanski é meio burocrática e os elementos de suspense do livro são quase todos retirados da trama. Mas Johnny Depp, Frank Langella e Emmanuelle Seigner salvam um pouco o resultado.

* * *

Por falar em Polanski, o melhor filme de todos os tempos sobre a solidão ainda é "O inquilino".

* * *

E já que estamos falando em cinema, outro dia mesmo vi "Entre umas e outras". Confesso que fiquei ansioso, até mesmo em algumas cenas onde deveria rir. É que tenho um amigo igualzinho (em comportamento) ao companheiro de aventuras de Paul Giamatti no filme. O cara é encrenca pura... e uma criança grande. Pobre Giamatti, eu sei bem o que você sofreu. ;-)

25.3.06

Em 1978 o Kiss lançou quatro Lps solo. O batera Peter Criss fez o mais suave de todos. É dele a melhor balada da coleção. Faz um tempo que não ouço, mas gosto muito dela.

Night falls on the city
Finds me all alone
Makes me wonder
Should I just go on home

And I walk up the stairs
To see if you're sill there
Would you mind if
I found you alone

Then a cold wind came callin'
Strange how it knew it'd bother me
See the night would fade
But the pain's gonna stay
Makes me wonder
Have you ever made love to me

I can't stop the rain,
here it comes again
Lightnin' strikes across the sky
Oh, I can't stop the rain, here it comes again
Lightnin' only blinds my eyes

Ain't it sad
When the only love I ever had
Just slips away
Right through my fingers

Ain't it a shame
when I think of your name
The only memory I have is it

I can't stop the rain,
here it comes again
Lightnin' strikes across the sky
Oh, I can't stop the rain, here it comes again
Lightnin' only blinds my eyes


("I can't stop the rain", Peter Criss)
Minicontos do desconforto -- 83

Precisou ir ao cinema, ficar no escuro, porque tinha vergonha das próprias lágrimas. Não importava que o filme fosse um desenho animado. Ele ficou lá atrás, tentando fazer do seu pranto a coisa mais silenciosa do mundo.

Quando se acalmou um pouco, recostou-se e fechou os olhos. E sonhou com sua juventude invencível, em que, como dizia a canção, não precisava da ajuda de ninguém. É, Lennon e McCartney estavam certos: a vida nos faz inseguros -- na verdade, nos faz pastiches de nós mesmos.

Naquela noite, a solidão daquele homem fez até os gaiatos personagens da tela se transformarem. O "o que é que há, velhinho" do Pernalonga até ficou mais cúmplice e menos sarcástico. A ira do pato Donald arrefeceu e ele fez as pazes com os esquilos. E Papa-Léguas e Coiote jantaram juntos, civilizadamente.

Ele devia estar sonhando -- aquilo não era possível. E estava: acordou quando o adolescente ao lado derramou um pouco do refrigerante em seu colo. Não ligou: pelo contrário, conseguiu sorrir pela primeira vez em duas semanas.

Quando saiu do cinema, catou na lata de lixo a vida que tinha jogado fora e a pôs novamente no bolso.

24.3.06



As imagens do local místico onde estive, no interior de SP (veja post mais abaixo). Em cima, a pirâmide de energia; e uma visão do vale, com uma cachoeira no meio.

23.3.06

É muita cara de pau! Mas muita mesmo!

Do Boletim do Sindicado dos Jornalistas do Rio:

"Patrões de jornais e revistas oferecem 4,5% de reajuste -- Acredite, jornalista. Eles oferecem um reajuste inferior à inflação do período. Isso em um ano em que o faturamento com publicidade cresceu mais de 14%, num desempenho surpreendente para a economia brasileira. Na última reunião de negociação, no nosso Sindicato, tivemos alguns avanços em poucas cláusulas sociais — como o aumento do auxílio funeral de R$ 500 para R$ 1 mil (comemore! nossa reivindicação era de R$ 2 mil) — e muitas propostas indecentes. Uma delas foi de criar, no segundo maior estado da Federação e um dos centros de mídia do país, ex-capital da República, um piso salarial de R$ 560 reais. Sim, é isso mesmo. Você não está com problemas de leitura. Problemas você vai ter se não se mobilizar e lutar pelo seu salário. Para saber do andamento das negociações e defender sua qualidade de vida, fique atento à convocação da próxima assembléia. Estamos aguardando uma nova proposta, menos indecente, dos patrões, para então marcar o encontro da categoria. Quem fica parado é poste!"

22.3.06

De volta de uma viagem a trabalho, no interior de SP. Fiquei num hotel com tendências místicas e fiz até uma caminhada com direito a pirâmide energizante, réplica do Templo do Sol dos incas e um labirinto concêntrico. Embora, como todo poeta, eu tenha um lado meio místico, nunca fui muito do estilo "nova era". Mas fiquei muito impressionado com a configuração sonora da réplica do Templo do Sol. Fiquei no centro dele e disse uma palavra. Ela ecoou imediatamente nos meus ouvidos, como se não tivesse sido eu a proferi-la, mas alguém a meu lado. É provável que haja alguma explicação científica para isso, mas tenho certeza de que não será suficiente.

17.3.06

Eu sou um romântico incurável, não um naturalista. Mas há que reconhecer, são poderosas as palavras de Júlio Ribeiro em "A carne":

O amor é filho da necessidade tirânica, fatal, que tem todo o organismo de se reproduzir, de pagar a dívida do antepassado segundo a fórmula bramática. A palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só. O início primordial do amor está, como dizem os biólogos, na afinidade eletiva de duas células diferentes, ou melhor, de duas células diferentemente eletrizadas. A complexidade assombrosa do organismo humano converte essa afinidade primitiva, que deveria ter sempre como resultado uma criança, em uma batalha de nervos que, contrariada ou mal dirigida, produz a cólera de Aquiles, os desmandos de Messalina, os êxtases de Santa Teresa. Não há recalcitrar contra o amor, força é ceder. À natureza não se resiste, e o amor é natureza. Os antigos tiveram uma intuição clara da verdade quando simbolizaram em uma deusa formosíssima implacavelmente vingativa, na Vênus Afrodite, o laço que prende os seres, a alma que lhes dá vida.

14.3.06

The true mystery of the world is the visible, not the invisible.

Oscar Wilde

13.3.06

Minicontos do desconforto -- 82

Ele compreendeu que seu vulcão interior -- depois de tantos anos quieto, sentindo o mar ventoso de tristeza lamber seus olhos cabisbaixos -- ia explodir de novo. Veio no meio da tempestade a consciência de que uma nova paixão despertava o magma e incandescia suas entranhas. Abriu-se para a chuva, repudiando toda a hesitação racional, e recebeu de volta sua verdadeira natureza, impetuosa, aventureira, com cascos de corcéis selvagens, sorrisos de sátiros e uma força irreprimível.

E ela, ela, só ela, tomava sua cabeça como uma voragem, como o aproximar das coortes de Aníbal, como o primeiro regurgitar do cosmo, como um coração escarlate a ribombar e espalhar vida renovada por um corpo ferido após longa doença.

Que pena que van Gogh não mais estivese vivo para pintá-lo.

10.3.06

Moçada, sou finalista ao prêmio SecMaster de melhor contribuição jornalística na área de segurança da informação, que venho cobrindo há um bom tempo. Há uma comissão julgadora, mas também uma votação popular. Por isso, se quiserem me dar uma forcinha, o site para votação fica aqui.

É preciso se cadastrar para votar. Uma vez cadastrado, deve-se entrar com login e senha e ir até a categoria Finalistas para Contribuição Jornalística. Eu estou lá esperando seu voto. A quem puder dar uma força, agradeço.

(Obs: é preciso votar nas outras categorias também).

7.3.06



Mais fotos da Bélgica (veja as outras no Cadafalso I). No alto, uma visão do Burg, em Bruges, local onde ficava a fortaleza do Conde de Flandres. Acima, eu diante da prefeitura de Bruges, um edifício de tirar o fôlego.

24.2.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte III

-- Mas Ricardo, você há de convir que seu pai, o duque de York, não era boa bisca. Ele estava de olho no poder desde sempre.

-- Porque odiava ver o reino nas mãos de um neto de usurpador, e ainda por cima um neto inapto para o poder. Dizem que Henrique VI tinha até problemas mentais. Meu pai reivindicava legitimamente o trono para os seus.

-- Mas quando o rei teve um colapso nervoso em 1453, ele fez manobras sujas para se tornar protetor da Inglaterra.

-- E você queria o quê? Que ele perdesse a oportunidade? Não seja ingênuo, Will. De qualquer modo, o protetorado durou pouco. O rei se recuperou e nasceu um herdeiro, Eduardo de Westminster. Aos poucos, meu pai decidiu reunir seus exércitos e enfrentar os partidários de Henrique de frente. E assim começou a Guerra das Rosas, a vermelha dos Lancasters usurpadores, e a branca, dos York.

-- Imagino que seu ódio aos Lancasters advenha do que fizeram após a morte de seu pai, não? Botaram a cabeça dele numa estaca e uma coroa de papel, rindo e celebrando barbaramente sua morte. Foi depois de algumas batalhas entre os dois lados.

-- Foi odioso. Eu tinha oito anos de idade quando isso aconteceu. Lembro-me... era inverno, logo depois do Natal.

31.1.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte II

-- Will, eu nasci no dia 2 de outubro de 1452, no castelo de Fotheringay. O mesmo castelo onde Maria Stuart perderia a cabeça em fevereiro de 1587, mas disso você deve se lembrar, pois estava bem vivo então. Meu pai era Ricardo, o terceiro Duque de York, e um homem, como eu, um bocado injustiçado. Aliás, é melhor começar daí, porque a história que vou lhe contar é uma de ódio e disputa por poder. Eu fui o último rei da Casa de York, que foi apeada do poder em manobras um tanto sujas. Tudo começa antes mesmo de 1400, no reinado de Ricardo II. Ricardo II, não sei se você sabe, era provavelmente bissexual. Mas se fosse um bom rei ninguém ia notar. O problema com ele (como também com o Eduardo II, seu bisavô) era que tinha porque tinha de botar seus favoritos para dar pitacos na administração do reino.

-- Também escrevi peças sobre isso.

-- Eu sei, e igualmente distorcidas, mas não tanto quanto a minha. De qualquer modo, só falo do Ricardo II para lembrar que ele foi deposto pelo primeiro sujeito da Casa de Lancaster a ocupar o trono inglês, Henrique de Bolingbroke, ou Henrique IV. Ele mandou matar Ricardo II após prendê-lo, mas as suspeitas de que o rei ainda vivia duraram tanto tempo durante seu reino de usurpador que precisou abrir o caixão de Ricardo só para provar à população que ele de fato estava morto.

-- Mórbido. Mas uma boa cena.

-- Henrique IV morreu em 1413, depois de uma terrível doença que lhe desfigurava a face e partes do corpo, além de aparentes ataques de epilepsia. Alguns os atribuíam a sífilis. Seu filho Henrique de Monmouth tornou-se então Henrique V. Este foi um grande guerreiro, o vitorioso da Batalha de Agincourt, que você tão belamente descreveu em sua peça sobre ele. Só que morrreu quando seu herdeiro, também chamado Henrique, tinha menos de um ano de idade. E aí a porca começa a torcer o rabo. Porque o reinado de Henrique VI foi um desatre total para a Inglaterra.

-- Também não é assim, Ma... desculpe, Ricardo.

-- É que você sempre escreveu do ponto de vista da Casa de Lancaster, a que está ligado meu maior inimigo, Henrique Tudor. Imagine, fazer uma peça em três partes sobre aquele bobalhão do Henrique VI...

-- Foi um bom rei.

-- Foi um rei bonzinho e babaca, governado pelos assessores e por aquela jararaca da mulher dele, Margaret de Anjou. Preste atenção e você verá o que quero dizer. Seu Amaro, desce mais uma cerveja aqui!

22.1.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte I

Existe um lugar insuspeito perdido no subúrbio de Niterói. Chama-se Riodades e, lá, nada acontece. O tempo parou. Na esquina da rua Cinco de Março com a Álvaro Neves, fica a mercearia do Seu Amaro, um português simpático, bigodudo e bem-apessoado que gosta de puxar dois dedos de prosa com os clientes que aparecem para comprar uma cerveja ou um traçado. De vez em quando, Seu Amaro bota umas poucas mesas na calçada, para os bebuns de sempre jogarem um carteado.

Foi nessa mesa que, uma tarde, sentaram-se dois tipos. Ambos eram muito brancos. Um meio calvo, com uma barba penteada e um ar meio afetado. Outro, com um ar senhorial, lábios finos de juiz, olhos escuros e penetrantes. À primeira vista, poderia se pensar que mancava um pouco, mas o andar esquisito era na verdade causado pela cicatriz de uma velha ferida de batalha perto do joelho direito.

Embora os dois estivessem vestidos como a maioria dos homens da Riodades se veste no domingo — de bermudas, camisas de abotoar abertas e sandálias de dedo — e, também como os nativos, pedissem uma dose de cachaça antes de partir para a cerveja barata, seus nomes eram um tanto estranhos: William Shakespeare e Ricardo de Gloucester.

Outra coisa estranha era que, embora parecessem de carne e osso, os dois eram fantasmas. Fantasmas muito velhos — um do século XV, outro dos séculos XVI/XVII — e com uma certa conta a ajustar.

Esta é a crônica da conversa que William (Will) e Ricardo (que na verdade foi o rei Ricardo III da Inglaterra) tiveram naquela tarde pachorrenta. Eles falaram no inglês empolado de seus tempos, mas para o pessoal da mesa vizinha pareciam duas minhocas da terra falando um português bem rasteiro. É este que vamos ouvir aqui também.

— Will, você foi muito injusto comigo — começou Ricardo.

— Majestade, o senhor tem que entender...

— Não me chame disso aqui. Nem de senhor. “Você” servirá. Não queremos chamar a atenção.

— Sim, Ma... desculpe.

— Você foi muito injusto comigo, como eu dizia.

— Entenda: eu escrevia para os herdeiros do seu inimigo. Inimigo vencedor, diga-se de passagem. E você já estava morto há uns cem anos.

— Mesmo assim. Sua peça “Ricardo III” manchou minha reputação para sempre. Até hoje todo mundo acha que eu sou malformado, corcunda, a própria personificação do Mal.

— Para meus patrocinadores, você era.

— Eu o trouxe aqui porque acho que você deve conhecer a verdade.

— Sei.

— Não está interessado?

— Se não estivesse, não estaria aqui sentado. Mas a verdade é sempre um conceito muito subjetivo. Até me lembrei de outra peça minha, “Júlio César”. Você acha que a verdade sobre César era a mesma para Marco Antônio e Brutus?

— (Suspirando) Eu sei que não. Mas estou aqui para relatar apenas os fatos. Eu não sou um santo, mas sua injustiça me aborrece muito. Até Belzebu me sacaneia, dizendo que minha alma penada devia ser corcunda e manca. Não tenho ilusões de que recuperarei minha reputação, a não ser que você reencarne no século XV como um de meus aliados de York (risos), mas quero que me ouça mesmo assim. Vocês jornalistas detestam admitir seus erros.

— Nunca fui um jornalista. Escrevi peças e poemas.

— Foi um cronista do seu tempo, a seu modo. E aqui tem a chance de ouvir a história na fonte.

— Que seja. Estou ouvindo.

— Para começo de conversa, nunca conspirei contra meu irmão George, duque de Clarence. Eu o adorava. Ele é que cavou sua própria ruína. E também fui leal a meu irmão Eduardo IV até que ele desse seu último suspiro.

— Em vista de seus atos posteriores, eu duvido.

— Vou lhe contar a história desde o começo.

19.1.06

Mário de Andrade tinha razão ao dizer que amar é um verbo intransitivo.