26.12.06

Minhas duas colunas mais recentes no Info Etc.

11-12-2006

A PRAGA DOS "MOJOS"

André Machado

Recebi um recorte digital do "Washington Post" muito preocupante. O recorte conta as novidades inventadas por uma cadeia americana de jornais para fazer face ao crescimento avassalador da internet. A mídia impressa, de fato, está tendo de se adaptar aos novos tempos em que o ciberespaço elevou à enésima potência as conseqüências da "aldeia global" prevista por Marshall McLuhan. Entretanto, as mudanças promovidas por um jornal da mencionada cadeia, no estado da Flórida, merecem reflexão.

O site do jornal passou a ser o principal receptáculo das notícias apuradas. E os repórteres que as escrevem não têm mais mesa, cadeira, terminal - em suma, não têm redação para onde voltar após as tarefas de apuração. Eles não vão a campo; eles vivem em campo. São, por isso mesmo, chamados de "mobile journalists", ou "mojos" (a palavra "mojo" em inglês também é gíria para "feitiço"). Os "mojos" praticamente ficam na rua o dia inteiro, em seus carros, como aqueles tiras que vemos nos seriados policiais, correndo atrás das notícias. Carregam consigo uma parafernália tecnológica: notebook com acesso wireless à internet, mais gravador, câmera fotográfica e filmadora (tudo digital). Apuram várias histórias por dia, tiram fotos (ou filmam) e, ato contínuo, publicam tudo no site do jornal. O recorte do "Post" acompanha um desses repórteres móveis numa de suas tarefas típicas: o lançamento de uma agenda comemorativa beneficente com fotos de atletas de uma cidadezinha.

O leitor há de perguntar: mas isso é notícia? Na era da globalização, o mote, por incrível que pareça, é ser online, mas cada vez mais local. Pelo menos é nisso que acreditam os editores da tal cadeia de jornais.

Apurada a "reportagem", o "mojo" mostrado pelo recorte entra no seu carro, abre o notebook e escreve a matéria ali mesmo, enquanto fala ao celular e toma uns goles da Coca-Cola instalada no vão entre a caixa de marcha e o painel de controle. A única luz é a do notebook. As costas devem doer...

Os diretores do jornal planejam ter pelo menos 14 repórteres móveis free-lance em breve, e a equipe permanente (de 30 repórteres) também vai começar a se deslocar para o novo esquema de trabalho. Além disso, aproveitando o esquema "faça-você-mesmo" que blogs, fotologs, videologs e a facilidade de acesso instantâneo da web permitem, a publicação investirá em matérias investigativas... investigadas pelos próprios internautas, acreditando que na prática seriam gerados "milhares de repórteres investigativos em vez de só três", como disse um executivo ouvido pelo "Post".

E também haverá um editor especializado em "construir audiências", para garantir que as histórias de maior apelo fiquem sempre no alto da página. Os comentários dos leitores serão estimulados em "message boards" (alguém aí se lembra do BBS?). E, claro, o ritmo da publicação online não pode parar. A pergunta é: deve-se publicar qualquer coisa, notícia genuína ou não? A turma da redação já está chiando: os textos dos "mojos" não passam pelos editores e acabam enfocando coisas desinteressantes (cadê a pauta?, dizem eles), e a pressão por alimentação ininterrupta do site já gerou pelo menos um constrangimento, quando um editor passou pela redação reclamando que o site não era atualizado há algum tempo e que era preciso publicar alguma coisa, fosse o que fosse.

Não é assim que se faz jornalismo, tenham certeza. Mas isso não é o pior - entre as mudanças previstas pelos "gênios" da cadeia de jornais, está a idéia de fazer repórteres acompanharem contatos de publicidade a clientes, para explicar melhor como seriam determinadas matérias de interesse... O que viola a condição básica e sagrada de qualquer imprensa livre: a redação aqui, o comercial lá longe.

Ler o recorte me causou calafrios. Alguém precisa dizer a esses caras que eles estão completamente malucos. De qualquer modo, acho que seria meio impossível ver um "mojo" aqui no Rio. Imagine. Carregar notebook, celular, filmadora e câmera digital para a rua. O título da primeira matéria do sujeito ia ser "Perdeu, tio!". E ela seria escrita à mão...

* * *

13-11-2006

EM DEFESA DA LIBERDADE

André Machado

Os criadores do projeto de lei que quase foi à votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado semana passada, e que exigia a identificação prévia dos usuários de internet para fazer qualquer coisa no ciberespaço, desde trocar emails até ir às compras, estão naturalmente convencidos de sua justeza e legitimidade. O relator do projeto disse ao GLOBO inclusive que não era verdade que a navegação dos internautas seria rastreada. Ora bolas, se não iria haver rastreamento, por que então a identificação obrigatória?

Eu escrevo muitas matérias sobre segurança da informação, e a preocupação com ela é legítima na era em que literalmente tudo é informação. Entretanto, é possível notar quando a legítima preocupação toma um desvio e se transforma em desculpa esfarrapada para iniciativas autoritárias. Aliás, até faz sentido o assunto vir agora à baila (antes da eleição, nenhum político se atreveria a falar nisso), num momento em que certos setores oficiais voltam ao velho vício (tão velho quanto a História) de tentar desacreditar o trabalho dos jornalistas.

Os autores do projeto bem poderiam dizer que ele n’est autre chose que la justice prompte, sévère, inflexible, isto é, que não passa da justiça imediata, severa, inflexível contra os malfeitores da web que tanto nos incomodam com phishing, spam, vírus e ciberfraudes. Esquecem-se de que foi exatamente com estas palavras que Maximilien de Robespierre - um político que passou à História com a aura de incorruptível - definiu a necessidade do Terror na Revolução Francesa. E o terror, em qualquer época, sempre transforma primeiro os cidadãos em reféns.

Consta que o projeto será apreciado por mais duas semanas. Mas deveria sê-lo por no mínimo mais dois anos, ou corremos o risco de termos nosso direito de ir e vir no ciberespaço confiscado para sempre, algo inadmissível. Nunca é demais lembrar o que escreveu John Perry Barlow na Declaração de Independência do Ciberespaço: "Governos do Mundo Industrial, (...) vocês dizem que há problemas entre nós [do ciberespaço] que precisam resolver. Usam essa alegação como desculpa para invadir nosso recinto. (...) Seus conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são todos baseados em matéria, e não há matéria aqui."

Vá lá, o próprio Barlow hoje admite que deve haver alguma governança na internet. Mas ela requer doses cavalares de prudência e bom senso. Não bastam boas intenções. Veja-se onde Robespierre terminou: ele queria a pronta justiça, mas acabou justiçado na guilhotina.

Esse tipo de projeto só poderia surgir numa era em que a informação ganha "valor agregado", embora de fato imaterial. Mas ainda há quem recorde os tempos em que os bits eram simplesmente passados de mão em mão: a turma do software livre e do código fonte-aberto. Semana passada, um artigo na Zdnet dizia que o mundo ainda não está preparado para o GNU/Linux, porque faltam jogos, suporte e há "sabores" demais do sistema operacional do pingüim. Mas há que existir uma alternativa a um mundo com apenas um sistema. As pessoas precisam ter a chance de escolher, experimentar e enveredar por bits diferentes. Viva a diferença.

Se o mundo open-source não fosse importante, a Microsoft não teria fechado o recente acordo com a Novell, para melhorar a interoperabilidade do Windows com o Suse Linux. Nem a Oracle teria entrado no jogo, oferecendo suporte ao Red Hat Linux. Os gigantes estão muito atentos à comunidade aberta. Que, no entanto, deve permanecer aberta a todo custo. Ela pode ser o último bastião contra o "valor agregado".

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