Minicontos do desconforto -- 83
Precisou ir ao cinema, ficar no escuro, porque tinha vergonha das próprias lágrimas. Não importava que o filme fosse um desenho animado. Ele ficou lá atrás, tentando fazer do seu pranto a coisa mais silenciosa do mundo.
Quando se acalmou um pouco, recostou-se e fechou os olhos. E sonhou com sua juventude invencível, em que, como dizia a canção, não precisava da ajuda de ninguém. É, Lennon e McCartney estavam certos: a vida nos faz inseguros -- na verdade, nos faz pastiches de nós mesmos.
Naquela noite, a solidão daquele homem fez até os gaiatos personagens da tela se transformarem. O "o que é que há, velhinho" do Pernalonga até ficou mais cúmplice e menos sarcástico. A ira do pato Donald arrefeceu e ele fez as pazes com os esquilos. E Papa-Léguas e Coiote jantaram juntos, civilizadamente.
Ele devia estar sonhando -- aquilo não era possível. E estava: acordou quando o adolescente ao lado derramou um pouco do refrigerante em seu colo. Não ligou: pelo contrário, conseguiu sorrir pela primeira vez em duas semanas.
Quando saiu do cinema, catou na lata de lixo a vida que tinha jogado fora e a pôs novamente no bolso.
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