22.1.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte I

Existe um lugar insuspeito perdido no subúrbio de Niterói. Chama-se Riodades e, lá, nada acontece. O tempo parou. Na esquina da rua Cinco de Março com a Álvaro Neves, fica a mercearia do Seu Amaro, um português simpático, bigodudo e bem-apessoado que gosta de puxar dois dedos de prosa com os clientes que aparecem para comprar uma cerveja ou um traçado. De vez em quando, Seu Amaro bota umas poucas mesas na calçada, para os bebuns de sempre jogarem um carteado.

Foi nessa mesa que, uma tarde, sentaram-se dois tipos. Ambos eram muito brancos. Um meio calvo, com uma barba penteada e um ar meio afetado. Outro, com um ar senhorial, lábios finos de juiz, olhos escuros e penetrantes. À primeira vista, poderia se pensar que mancava um pouco, mas o andar esquisito era na verdade causado pela cicatriz de uma velha ferida de batalha perto do joelho direito.

Embora os dois estivessem vestidos como a maioria dos homens da Riodades se veste no domingo — de bermudas, camisas de abotoar abertas e sandálias de dedo — e, também como os nativos, pedissem uma dose de cachaça antes de partir para a cerveja barata, seus nomes eram um tanto estranhos: William Shakespeare e Ricardo de Gloucester.

Outra coisa estranha era que, embora parecessem de carne e osso, os dois eram fantasmas. Fantasmas muito velhos — um do século XV, outro dos séculos XVI/XVII — e com uma certa conta a ajustar.

Esta é a crônica da conversa que William (Will) e Ricardo (que na verdade foi o rei Ricardo III da Inglaterra) tiveram naquela tarde pachorrenta. Eles falaram no inglês empolado de seus tempos, mas para o pessoal da mesa vizinha pareciam duas minhocas da terra falando um português bem rasteiro. É este que vamos ouvir aqui também.

— Will, você foi muito injusto comigo — começou Ricardo.

— Majestade, o senhor tem que entender...

— Não me chame disso aqui. Nem de senhor. “Você” servirá. Não queremos chamar a atenção.

— Sim, Ma... desculpe.

— Você foi muito injusto comigo, como eu dizia.

— Entenda: eu escrevia para os herdeiros do seu inimigo. Inimigo vencedor, diga-se de passagem. E você já estava morto há uns cem anos.

— Mesmo assim. Sua peça “Ricardo III” manchou minha reputação para sempre. Até hoje todo mundo acha que eu sou malformado, corcunda, a própria personificação do Mal.

— Para meus patrocinadores, você era.

— Eu o trouxe aqui porque acho que você deve conhecer a verdade.

— Sei.

— Não está interessado?

— Se não estivesse, não estaria aqui sentado. Mas a verdade é sempre um conceito muito subjetivo. Até me lembrei de outra peça minha, “Júlio César”. Você acha que a verdade sobre César era a mesma para Marco Antônio e Brutus?

— (Suspirando) Eu sei que não. Mas estou aqui para relatar apenas os fatos. Eu não sou um santo, mas sua injustiça me aborrece muito. Até Belzebu me sacaneia, dizendo que minha alma penada devia ser corcunda e manca. Não tenho ilusões de que recuperarei minha reputação, a não ser que você reencarne no século XV como um de meus aliados de York (risos), mas quero que me ouça mesmo assim. Vocês jornalistas detestam admitir seus erros.

— Nunca fui um jornalista. Escrevi peças e poemas.

— Foi um cronista do seu tempo, a seu modo. E aqui tem a chance de ouvir a história na fonte.

— Que seja. Estou ouvindo.

— Para começo de conversa, nunca conspirei contra meu irmão George, duque de Clarence. Eu o adorava. Ele é que cavou sua própria ruína. E também fui leal a meu irmão Eduardo IV até que ele desse seu último suspiro.

— Em vista de seus atos posteriores, eu duvido.

— Vou lhe contar a história desde o começo.

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