Minicontos do desconforto -- 87
Émile -- Eu estou definitivamente velho: não sei mais expressar o meu amor.
François -- Talvez você seja mais feliz agora. O amor é uma doença que nenhum antibiótico cura.
Émile -- Não seja cínico.
François -- Não estou sendo. O amor é como uma síndrome imunológica: destrói todas as suas resistências. Aliás, é pior: no caso do amor, um simples olhar de desprezo pode matar.
Émile -- Então já estou morto. Ela disse que me odeia, e tudo o que eu fiz foi cair a seus pés e me declarar.
François -- Grande burrice. É assim mesmo que a gente fica comendo na mão do outro. O desprezo vem quase imediatamente. Tripudiar é irresistível. Você nunca aprendeu isso?
Émile -- Quem ama esquece tudo o que aprendeu. Repete os erros, porque quando se ama é sempre a primeira vez.
François -- Tolice. Jogar é preciso.
Émile -- Jogar leva apenas ao sexo. Jogar é um ato racional. O amor prescinde de jogos...
François -- Quá quá quá. Coitado... Além disso, você não continua namorando Cosette? Com que então declarou amor a outra?
Émile -- Eu gostaria de um pouco mais de romance em minha vida.
François -- Mas para isso é preciso se mexer, rapaz. Não dá para ter as duas ao mesmo tempo.
Émile -- Quem disse? Por que não posso amar as duas diferentemente? E elas a mim? Cosette e eu não estamos em crise, é algo consolidado, daí a previsibilidade. Já no caso de minha amiga, o amor é fresco, perigoso, cheio de acidentes geográficos. Acho até que um poderia alimentar o outro.
François -- E depois sou eu o cínico...
Émile -- De qualquer modo, tudo emperra na expressão. Como expressar isso nessa sociedade provinciana e careta? Vai tudo levar a um inferno permanente, é o que vai acontecer. E ela já me odeia, não adianta mais nada...
François -- Lamento, meu amigo. Lamento mesmo.
Émile -- É. Só tem um jeito. Pede aí.
François -- É. Garçom, mais dois uísques. Duplos.
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