15.1.02

Tcharan!! Tcharaan!! Tcharaaan!!!! Caros amigos, é meu dever informar, tomado de emoção, que vocês agora vão ler o primeiro conto escrito a quatro mãos por Crib Tanaka e André Machado. Uma dupla, que espero, vai bolar mais coisas para entrar em futuros posts. Crib me mandou a história semana passada e perguntou-me se não queria terminá-la. Fiquei logo com as mãos comichando, encarei como um desafio, e concluí o conto ontem. Ela deu os retoques finais, com a sutileza que lhe é característica, e voilà! Tomara que vocês gostem.

EUGÊNIA E O TEMPO

por Crib Tanaka e André Machado

A vida, marcada por um relógio desses irritantes que não param de tiquetaquear, não a inquietava até então. Era bom saber em que parte do dia estava. Tinha fixação por relógios. Coloridos, de marca, caros, falsificados, com pulseiras grossas, finas, digitais -- todos a fascinavam. Aprendera a ver horas antes de ler. E, desde que fizera tamanha descoberta -- poder informar que horas eram --, sempre que podia, um marcador de tempo comprava.

Às seis horas da manhã em ponto, durante cinco anos, soaram três toques, vindos de três lugares diferentes de sua pequena mas bem arrumada casa. Morava sozinha e gostava dessa pseudo-solidão misturada à liberdade. Assim que despertava, caminhava em direção à uma bancada, que ficava no meio da cozinha, onde tomava o café-da-manhã.

Pão, manteiga e café-com-leite. De pantufas e camisão, lia as notícias políticas. Mordia o pão lentamente, enquanto mexia, sem olhar, a mistura líquida dentro da xícara. Sempre respingava um pouco no jornal. Irritada com a eterna desatenção, chiava e limpava a sujeira com um guardanapo, atirando-o na lixeira em seguida. Todos os dias, a mesma coisa.

A banheira de cerâmica rosa era o seu lugar preferido da casa. Herdara-a da avó. Era dessas abauladas, que se firmam em quatro pés trabalhados -- que por sua vez se abrem ao encostar no chão, como se sentissem o peso de quem se banha deitado. Lá, passava, no mínimo, uma hora por dia. Água quente, vaporosa, misturada a sais relaxantes. Era muito tensa. Acreditava nos óleos achar para isso solução.

Os cabelos, até os ombros, eram bem cuidados, de um castanho muito claro, por vezes louro. Os pés, sempre pintados de cores claras, eram macios como se nunca houvessem encostado em superfície áspera. Sabia há pouco tempo que suas mãos longas chamavam a atenção. Ela o percebera no dia em que as pousara sobre uma mesa de reunião. Todos os olhares voltaram-se para seus dedos finos, suas unhas compridas. A partir de então, passou a dar-lhes especial atenção.

Trabalhava numa escola particular. Ganhava bem. Com o salário privilegiado, comprava livros, CDs, objetos de decoração e relógios. Por conta destes, muitas vezes mudava móveis de lugar ou até mesmo novos comprava. Eram eles a atração principal, artefato imprescindível para a harmonia do que chamava lar. Para ela, relógios eram a alma de uma casa e o retrato do senso de organização que toda mulher deveria ter.

Os relógios soaram. Seis da manhã. Estava cansada, pesada, estava levando uma vida desgastante demais, de muito trabalho, mas agora não era hora de pensar nisso. Levantou-se e seguiu a rotina de sempre: café com leite, banheira... tudo foi feito com muita calma, até lembrar-se de que teria que estar mais cedo no colégio. Arrumou-se a partir de então com pressa, coração acelerado, calor nas maçãs do rosto. Pegou a bolsa e foi andando a passos largos, até o carro na garagem. Tinha pânico de atrasos. Atrasos são sinônimo de irresponsabilidade, sempre dizia. Ligou o carro, deu ré e saiu sem mesmo o portão fechar. Não poderia perder tempo.

Estacionou o carro na primeira vaga que viu, bateu a porta com força e xingou bem baixinho ao ver que nela havia prendido um pedaço do vestido. Andando com pressa, chegou ao colégio e deparou-se com os imensos portões de madeira fechados. Estranhou. Tinha certeza de que a reunião estava marcada para aquele dia, naquele horário. Deu a volta, gritou um alô, mas só ouviu o som da própria voz ecoando. Sentou-se então nas escadas. O melhor seria esperar um pouco. Quando a coluna chiou, passou o apoio do corpo para uma das mãos e ergueu a outra. Olhou para o pulso e mal pôde acreditar. Não estava com relógio algum.

Sentia falta de ar, tremia e não conseguia levantar-se dali. Como poderia mexer-se? Ninguém havia chegado. Há quanto tempo estaria esperando, sentada ali, naquela escadaria de mármore gelada, gasta, sem cor? Não sabia. Não sabia. O melhor a fazer é esperar alguém chegar. Sim, é o melhor a fazer -- dizia a si mesma. E logo sentia falta de ar de novo. Suava e tentava entender por que isso estava acontecendo logo com ela, que sempre detestara esperar, logo com ela, que nunca se atrasara, logo com ela, que nunca havia se perdido no tempo, que sempre acreditara em finais felizes.

Respirou fundo. Sentada na escada, acalmou-se e passou a observar, em vez de apenas registrar imagens. Chegou a franzir a testa quando viu as folhas voarem, as nuvens cobrirem o sol de inverno e os pássaros pousarem nas árvores que enfeitavam o campus. Nunca havia reparado em nada do que estava vendo. Achou graça daquilo tudo, dos esquilos escondidos atrás de alguns troncos, das cócegas que sentia quando o vento puxava seus cabelos. E ficou ali. Horas.

Badalou então o sino, chamando os fiéis para a missa. Seis horas, pensou. Eugênia deu-se conta de que esperara ali por mais de dez horas. Estranho, não estava cansada... Mas ergueu-se, afinal não era possível que alguém mais viesse. Começou a andar em direção ao carro. De repente, viu-se em meio a uma neblina. Caminhou pelo campus, que adquirira um cheio mais forte de mato, de terra fecundada, sem conseguir achar a saída. O muro que cercava o lugar parecia haver sumido. E ao longe, ouvia o que lhe pareciam ser cascos de cavalos.

Súbito, a neblina se dissipou e ela se achou no meio de um prado florido, apenas parcialmente tocado por mãos humanas. O sino continuava a bimbalhar na igreja, que agora podia ser vista não muito longe dali, já que não existia mais muro. E a igreja, meu Deus, estava novinha em folha, sem uma rachadura, sem um desbotado em sua fachada. O sino refulgia à luz do sol -- agora não mais encoberto por nuvens. Eugênia ficou petrificada por um momento. Onde vira aquela cena? Lembrou-se num átimo: num trabalho fotográfico-digital publicado recentemente num jornal, que mostrava pontos da cidade em várias épocas diferentes. Estava dentro da imagem do bairro... em 1701.

Impossível, pensou. Mas, antes que fizesse qualquer outra reflexão, um enorme cavalo negro surgiu de uma picada à sua direita, montado por um homem igualmente negro. Dono de lábios carnudos e olhos em brasa, ele estalava um chicote à medida que galopava em sua direção e berrava uma frase que ela não conseguia entender. Eugênia continuou imóvel, embora tremesse da cabeça aos pés: quando percebeu que seria chibateada pelo cavaleiro, apertou os olhos e fechou as mãos com força, segundos antes de a dor chegar, e só então entendeu o brado do homem:

-- Liberta-te de Cronos!

Ouviu o vento zunir em torno do chicote e começou a gritar, quando percebeu que sua boca estava cheia de água e não conseguia respirar. Bolhas em profusão saíram de seus lábios e narinas, e por um instante, imaginou que a chicotada a jogara num pântano ou num rio oculto pela mata.

Mas não sentira dor nenhuma. A água era quente e perfumada.

Emergiu então da banheira, ofegando, deglutindo em grandes haustos o ar querido. Dormira? Sonhara? Que horas eram? E a reunião? Pulou desajeitadamente da água, quase caindo no banheiro e correu para a sala. Mas, não era mais a sala que ela conhecia. Não havia mais um relógio sequer. Gritou e foi de cômodo em cômodo, procurando um mostrador que a salvasse. Nada. Nem o reloginho da Minnie que comprara para a sobrinha. Nem aquele calendário que ganhara na mercearia estava mais na geladeira. Aliás, nem geladeira mais havia. Na verdade, só o que restava de sua amada mobília bem arrumada era uma mesa e algumas cadeiras. Todas estranhamente envelhecidas.

Também não havia mais armário, nem roupas. Pelo menos lhe restara o roupão pendurado atrás da porta do banheiro. Vestiu-o, calçou os chinelos e saiu, atordoada, para a luz do dia.

O que viu é impossível de descrever com clareza. Bastará dizer que adentrou o maior bosque do mundo, com aléias adornadas com flores fragrantes, de todas as cores; aléias que se curvavam e bifurcavam ad aeternum e levavam a cascatas cujo frescor fazia-se perfume; a tais quedas se opunham finas folhas de prata e pomares tão suculentos que seria possível de seus frutos alimentar-se com o olhar. Em todas estas paisagens luxuriantes que se alternavam, Eugênia ouvia conversas de animais. E entendia seus pensamentos simples e ordeiros, tão diferentes da angústia que acompanhara por toda a sua vida.

Não havia nenhum relógio.

Quando a encontraram, ainda sentada nas escadas na segunda-feira, levemente inclinada contra o portão, tinha aquele meio-sorriso giocondiano que às vezes assoma à face dos enfartados; e sua expressão era tão cheia de beatitude que um dos assistentes do legista, mais jovem e ainda sensível aos caprichos da Ceifadora, pensou: ela morreu feliz para sempre.

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