8.1.02

"Somente os amantes" -- Capítulo II

Marcel chegou perto do estranho e viu um jovem como ele, de olhos azuis desbotados e pele pálida, que parecia ainda mais anêmica naquela situação. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro abriu os braços, ergueu a cabeça para o céu e fechou os olhos, deixando a chuva envolvê-lo como um véu. Depois, olhou para Marcel e sorriu.
-- Eu sei o que você vai dizer. Vai perguntar o óbvio: o que estou eu fazendo aqui no meio de toda essa água? Pois, meu amigo, eu lhe garanto que a chuva é fonte de maior prazer do que o sol. O sol embota a alma, os sentidos, o pensamento; faz as pessoas dizerem tolices, acreditarem que este mundo é doce, que não lhes fará mal algum. O sol é o maior instrumento de alienação já inventado por Deus, esse grande Manipulador. É mais eficaz que a TV, pois ninguém pode desligá-lo. Eu odeio o sol, embora reconheça que ele é um mal necessário. Sempre fico na sombra, que traz volúpias e apetites muito mais interessantes. Mas sou amante da chuva, que bate na cabeça dos homens, entristece-os, e por vezes conspira com a Morte. A doçura da chuva é a doçura do Destino. Ela é inexorável como Ele, fabrica poetas e loucos. O sol é para os políticos.
Marcel não respondeu. Ficou ali, parado, o guarda-chuva torto. A água molhava seu ombro. O outro levantou-se.
-- Desculpe, acho que falei demais, não é mesmo? Sem dúvida esta não é a maneira certa de travar relações com alguém. De qualquer modo, se você quiser ser meu amigo, vai ter que se acostumar. -- Sorriu e estendeu a mão. -- Meu nome é Otávio.
Marcel apertou-lhe a mão e sorriu.
-- Olá, eu sou Marcel. Desculpe ficar meio sem ação, mas por um momento você pareceu tão mais velho do que eu, e agora...
-- É sempre assim. É uma pena ter um discurso de quarentão quando contamos apenas dezoito anos. Talvez eu tenha amadurecido cedo demais. Provavelmente morrerei podre, como uma fruta que ninguém colheu...
-- Dezoito? Nossa, eu só tenho dezessete e precisaria de uma faculdade de filosofia para falar como você.
-- Não diga isso. Filosofia é para covardes. Os filósofos desejam compreender o real, mas o que eles não compreendem é que o real não faz sentido. Eu prefiro as doutrinas, porque elas reinventam o real. Sou um fã do dogma.
-- Suponho, então, que você seja católico. É a doutrina mais dogmática que conheço. Ou estarei errado?
-- Está. Catolicismo não é doutrina, é um engenho de tortura da Idade Média. Outras religiões podem até merecer o apelido de doutrinas, mas a católica tem apenas um objetivo: matar a alma e o corpo pela renúncia. Nasça católico, e terá vindo ao mundo natimorto. Padres! ah! O mundo os venera como sábios, mas eu jamais entregaria as perguntas de meu espírito a alguém que passa toda a vida tentando viver sem o próprio corpo. A carne faz parte de nós, temos de ouvir seus apelos. Muitas sociedades tentaram domá-la, mas isto é impossível. Só os fracos cedem aos princípios que tentam regular a paixão. Você é católico?
-- Não, eu não acredito em Deus.
-- Pois deveria.
-- Pelo que você acabou de dizer, não sei não.
-- Ora, não é a esse Deus que me refiro. Você deve ter outros deuses, ser um politeísta. Como na Grécia antiga, terra de divindades como nós, de carne e osso. Acho que, se os cristãos tivessem surgido na época grega, seriam tão ridicularizados que se atirariam aos leões por conta própria. Quem trocaria Zeus, Hera, Atenas, Afrodite, Ares... e outros... por um Deus cujo reino não é deste mundo, que mora numa travessa sem nome, numa casa sem número... e que, principalmente, não se interessa em seduzir as mais belas mulheres que vê na Terra? Que exemplo divino é esse? Vou lhe contar um segredo: acho que no Jardim do Éden só existem solteironas e eunucos.
Pela primeira vez naquelas férias, Marcel riu com vontade. Otávio era espantoso, admirável. Sua inteligência transbordava dos olhos azuis desbotados e da boca curvada em troça como longas cascatas de vinho de uma garrafa cheia que se quebra. Convidou-o para esquecer um pouco o prazer da chuva e tomar um chocolate quente com ele na casa de veraneio.

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