4.1.02

Ainda não sei se posso chamá-la de amiga, mas com certeza gostaria imensamente disso. A webcontista Crib Tanaka -- um dos presentes que 2001 me enviou antes de se extinguir -- me mandou algumas de suas histórias, e me apaixonei perdidamente por esta, que pedi licença para publicar aqui.

Da troca de águas

(Crib Tanaka)

Sempre gostou de mato depois da chuva, úmido, com cheiro de resto de terra. Quando podia, andava por cima do tapete de substância viva, com os pés nus, deixando-os afundarem, se misturarem, se esconderem do resto do corpo molhado.
Morava sozinha e tinha “costumes esquisitos aos olhos de quem não acreditava nos poderes naturais” -- como ela mesma dizia. Fora criada somente pela mãe, Sara, de longos cabelos negros, olhos verdes e boca carnuda, que se abria em imenso sorriso quando via os próprios feitos darem certo. Veronica tinha saudade da mãe, do abraço forte, dos braços firmes que a enlaçavam várias vezes no dia. Com ela, aprendeu a escolher frutas, a andar em trilhas, a guiar-se pelo céu, a aceitar o poder da lua e a usar o vento como transporte de tremores e pistas internas.
Veronica não gostava de muitas luzes, sentia-se com areias nos olhos debaixo delas. Preferia a mistura de sombra e realidade. Cada canto de sua casa era ilimitado por velas, de diferentes tamanhos, algumas pequenas e torcidas, outras, compridas e cônicas. As colocava em cima de pequenos pires, que combinassem entre si. Precisava de harmonia de cores. O ritual começava quando o sol ameaçava fugir e a noite cantava seu negro. Era esse seu horário. Às seis horas, sentia a alma inundada. Perdia-se em anseios, atos e erros. Acertos e começos de finais diferentes para cada afluente-eu.
Por muitas vezes, dobrava-se em pequeno feto e chorava, com lágrimas internas. Sentia o estômago embrulhado, a barriga inchada, o ventre latejando e a cabeça confusa. Muita água dentro de si. Nascera sob o fogo. Passava então, horas na mesma posição, buscando espaço exterior para gotas internas. Não conseguia. Cansava. E então, dormia.
Deliciava-se com o vento. O outono estava chegando, mudando cores. Nessa época do ano, costumava caminhar, logo que o sol apontava no céu. Punha um de seus vestidos largos e ia, descalça, pisando em folhas secas, em solo ainda molhado, tomando cuidado com interferências que não as naturais. Nessas caminhadas, descobrira grutas, casas abandonadas e até mesmo rituais macabros, vudus deixados por quem abusa do que é oferecido. Temia, mas respeitava e logo pedia licença e distância.
Na última lua crescente do outono, procurava por coisas novas. Buscava intuir somente. Então, nesse dia, levantou-se mais cedo que o normal, como o corpo havia implorado. Com calma, tomou chá de maçã e mastigou fibras de canela. Colheu folhas e ofereceu frutas à Deusa. Cobriu-se de branco até os pés e caminhou para o limite entre quintal e floresta.
Lá, posicionou-se onde a vontade parou o corpo, fechou os olhos e respirou fundo e lentamente. Deixou a cabeça pender para trás, sentiu os cabelos roçando o final das costas. As palmas das mãos virou para cima, deixando-as na altura da cintura. Rodou, intercalando olhos fechados e abertos, tontura e prazer, por mais de um minuto, em cima de um círculo que havia feito com os próprios pés.
Quando sentiu ser hora de parar, olhou à sua frente e viu uma trilha já meio aberta. Foi por ela andando, correndo, engatinhando, sentindo cheiro de flores, vendo bichos esquisitos, admirando o orvalho deitado em algumas folhas ainda. Os pés absorviam terra molhada, lama que entrava por entre os dedos, antes pó seco, onde pousava o corpo nas noites de verão. O suor gelado escorria pelas costas, colava os cabelos na nuca, molhava os seios. Veronica passava por entre grandes árvores, aproveitava a confusão da sombra que alguns galhos faziam e abria caminhos com as mãos, afastando flores, empurrando folhas, esgueirando-se. Percebia agora que o caminho só levava a um lugar.
À sua frente, com olhos tensos, via um enorme lago. Cristalino. Tons de verde e amarelo. Galhos enfeitando o espelho calmo e fundo. Tirou o vestido e mergulhou de primeira, deixando-se inteira submergir. Deixando corpo e lago fundirem-se em um só pranto. Gelada estava, sem tremores. Sentia troca de águas, era abraçada por ondas que ela mesma provocara na água. Os cabelos pareciam secos ainda, os pés não tocavam o fundo e nem as mãos, a superfície, onde batia o vento de outono, onde o ar mostrava-se componente de mudanças. Era inteira água. Não precisava subir para respirar. Nascia de novo.

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