28.1.02

"Somente os amantes" -- Capítulo III

Marcel apresentou Otávio aos pais e emprestou-lhe roupas secas. Depois, sentaram-se à mesa e sorveram xícaras de chocolate acompanhadas de torradas, manteiga, geléia e biscoitos de leite.

-- Me fale de você, Marcel. Algo me diz que vamos ser bons amigos. E, se isso for presunção de minha parte, pelo menos prefiro escutar minhas próprias tolices que as dos outros.

-- Você me intriga.

-- Intrigar é o primeiro dever de um amigo. Trair é o segundo.

Marcel fez cara de incredulidade.

-- Há um terceiro?

-- Esse, até hoje ninguém descobriu.

-- Arrepender-se, talvez?

-- Nunca me arrependo do que fiz. Só do que não fiz... ainda.

"O que alguém como Otávio poderia achar de interessante em minha vida?", pensou Marcel. De qualquer modo, falou-lhe de sua infância solitária -- da qual poucas lembranças restavam, em especial a de um pequeno parque em Teresópolis onde ele costumava se sentar no balanço e se balançar durante horas a fio, sentindo o vento lhe tocar o rosto e as pernas, imaginando-se em qualquer outro lugar que não ali, em qualquer outra vida que não a sua. Queria, como todas as crianças e muitos adultos (que nada mais são que crianças que não podem mais usar roupas infantis), um lugar encantado, povoado de seres ferozes e corajosos, aventuras, guerras. Um lugar onde não houvesse chuva -- que ele odiava, ao contrário de Otávio -- e onde as plantas sobreviveriam assim mesmo. Seriam plantas mais fortes e não comestíveis (saladas, argh). Os sonhos sempre tinham sido seus melhores amigos.

Os sonhos e os livros. Amava romances de cavalaria, e a maior glória de sua vida fora representar o rei Artur no colégio. Gostava também de livros de terror, mas dormia toda vez que lia um clássico. O tempo passou e a solidão foi aparentemente se dissipando. Sua família se mudou para um prédio onde fez muitos amigos. Pela primeira vez, a adolescência chegando, sentia-se parte de um grupo. Brincavam de pique, jogavam bola, iam à praia, andavam de bicicleta, organizavam festas para dançar com as meninas. Ah! as meninas. Faltava uma namorada, que ele desejava ardentemente. Noites em claro se sucederam por causa desse maldito sonho. Não que ele estivesse especificamente apaixonado por alguém, mas sentia necessidade de tocar uma mulher, de beber-lhe o perfume, de beijar seus lábios até deixá-los pálidos com a voracidade de seu amor. É claro, pensava em sexo também. Achava, aliás, que tinha algum problema quanto a isso. Os amigos viviam contando vantagens sobre o número de vezes que conseguiam se masturbar. Diziam que gozavam quatro, cinco vezes. E ele não conseguia sequer uma ereção. Trancava-se no banheiro, imaginava todas as perversões possíveis, fechava os olhos, via-se com as meninas que mais admirava... e nada. Havia ereções, é claro, mas sempre nos momentos mais inoportunos, como em plena praia, daquelas que obrigam você a andar como um corcunda para disfarçar.

Seu pai notara que ele andava nervoso, e um dia chamou-o a um canto. Ofereceu-se para levá-lo a um bordel. Mas ele tinha um certo rancor do pai, que a vida toda ficara emudecido na poltrona da sala, lendo jornal ou vendo TV. Nunca lhe ensinara nada, nunca conversara com ele sobre sexo. Aprendeu com os amigos, e aprendeu-o da usual maneira distorcida: o sexo era algo sujo, era sacanagem, algo furtivo, proibido. Ficou impressionado. Quando era ainda ingênuo, e os caras mais velhos do playground insinuaram que seu pai e sua mãe haviam feito aquilo para dar-lhe a vida, negou-o furiosamente. "Meus pais jamais fariam isso", respondeu, para delírio dos outros, que caíram na gargalhada. Mais tarde, assim que descobriu que a história era diferente, culpou o pai. E quando ele se candidatou a guia dos prazeres mundanos, recusou a oferta polidamente. "Não, obrigado, pai. Cada coisa a seu tempo". Convenceu a si mesmo de que sexo não podia ser dissociado de amor. Queria tê-lo com alguém que se importasse com ele, e com quem se importasse também. No fundo, porém, sabia que não era assim. Sonhava à noite com prostitutas deslumbrantes à sua mercê, lambendo todo o seu corpo bem devagar, beijando-lhe os cabelos, os mamilos, o umbigo, as coxas, as articulações e por fim o pênis. Na atmosfera enevoada dos sonhos, elas bebiam sofregamente o sêmen, e pediam sempre mais, como se ele fosse uma droga. Acordava suado, ofegante, a cama molhada e pegajosa. A mãe não agüentava mais lavar os lençóis. Até o momento, sequer beijara uma mulher na boca. E sabia agora que, mesmo tendo feito bons amigos, era um solitário por natureza. A solidão lhe era tão intrínseca quanto a cor de seus olhos, podia senti-la até no meio de uma multidão. Vivia insatisfeito, como quem não consegue se acomodar numa posição e assim permanecer. Não tinha irmãos, e achava que um talvez o tivesse tirado desse incômodo estado.

De resto, não pensava muito no futuro. Não queria ser rico, não se importava com o mundo material ("exceto os corpos de mulheres", corrigiu Otávio). Queria preencher a lacuna que intuía haver em sua alma. Agora estava no último ano do segundo grau e ia prestar vestibular para Comunicação, não pela carreira, mas pelas pessoas que diziam existir no campus. Pessoas instigantes, de múltiplos interesses, criativas, sedentas de experiências novas, como ele.

-- Antigamente, a experiência era o nome que os homens davam a seus erros, como disse Oscar. Hoje, é o nome que dão a sua inércia. Seus erros tornaram se inomináveis...

-- Oscar?

-- O único escritor que não precisava ter escrito um livro para entrar na história da literatura. Oscar Wilde.

-- Seu guru? Fale você agora, Otávio, é sua vez.

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