Este é um post que vale a pena estar nos dois blogs. Aliás, em vários, se vários eu tivesse!
Nada como um pouco de merda jogado no ventilador de vez quando. Concordem ou não, todos os que gostam de poesia têm de ler a Carta Aberta aos Poetas Brasileiros do Alexei Bueno, publicada hoje no Caderno B do JB. A entrevista de Bueno, no mesmo lugar, também é excelente. Veja alguns trechos sensacionais da carta-manifesto:
O Brasil continua, até hoje, atolado na Escola do Recife e no Positivismo. É o fetichismo da objetividade, que serve de base para as maiores sandices críticas entre nós. (...) Há subjetividades muito mais exatas e diretas que mil objetividades.
Toda a grande literatura é continuidade e sobretudo ruptura.
A ''verdadeira'' poesia brasileira será a de quem a escrever grande, e João Cabral de Melo Neto não merece ser avô dos pigmeus que por aí invocam o seu nome.
Após uma luta feroz para se estabelecer uma liberdade criadora no Brasil empreendida pelos modernistas na vigência do lamentável Neoparnasianismo, acabaram por criar outra camisa-de-força, pior, na nossa literatura, que nega aos que não se filiam a ela todos os territórios expressivos conquistados após o Modernismo.
O Parnasianismo foi o Concretismo da República Velha positivista. O Concretismo foi o Parnasianismo da ditadura militar. Todos grandes defensores do ''rigor formal'', da ''clareza'' e da ''razão''! Todos muito ''modernos'', essa palavra que não quer dizer absolutamente mais nada!
A Modernidade morreu, viva a arte e a literatura! Que os seus fósseis ladrem a sua ladainha decrépita à vontade. Basta de múmias marqueteiras.
Cabe a todos os poetas desse país, especialmente aqueles esquecidos fora das metrópoles, mas sobretudo aqueles que têm algo a dizer, aqueles que sentem a imperiosa necessidade de dizer algo, pois daí nasceu sempre toda a literatura, e não de ludismos formais, mandar todo esse lixo ao espaço, e iniciar com o novo milênio uma nova poesia, que não será nem ''moderna'', nem ''verdadeira'', nem ''legítima'', nem coisa nenhuma, será grande quando o for, e moderna e verdadeira e legítima porque o foi. O espírito sopra quando e onde quer, e para nós há três milênios de riqueza poética às nossas costas, um fabuloso desprezo ao nosso lado e o ilimitado da História à nossa frente!
Ave, Alexei.
31.1.02
29.1.02
Esta história, de autor desconhecido, é, segundo alguns sites, um clássico. Parece até roteiro de uma historinha do Dilbert:
O SAPO COR-DE-ROSA
O diretor de arte chegou às 10:30, óculos escuros, cabelo molhado. A menina do atendimento, desesperada, já estava na criação cobrando os anúncios.
- Pelo amor de deus! O cliente vai viajar hoje à tarde e quer ver os layouts pra poder mostrar para o diretor internacional que vai ter uma reunião com a coordenação da América Latina e eu vou me ferrar porque todo mundo tira o corpo fora!
O diretor de arte não tinha ainda achado aquela sacada gráfica, entende?
- Pelamordedeus! Pelamordedeus!
O diretor de arte, sem tirar os óculos nem dizer palavra, senta na frente do computador pensando: "Que saco, só um mês de prazo, o redator fez os títulos só há duas semanas, assim não dá pra trabalhar".
Quinze minutos depois, os layouts estão saindo da impressora. O redator vê os anúncios e comenta:
- Por que um sapo cor-de-rosa?
- Sei lá, é uma imagem bonita, instigante... - diz o jovem diretor de arte.
- Mas o anúncio é de eletrodoméstico. Que é que tem a ver?
O diretor de arte não queria entregar que não pensou em nada e que aquele sapo era a única imagem que tinha no arquivo do computador, mas nem deu tempo de ele inventar uma justificativa.
- Daquí esse troço que eu tô com pressa.
No caminho do cliente, no carro, o diretor de atendimento vê pela primeira vez os anúncios para poder dizer na reunião que tinha acompanhado o processo criativo todo, inclusive direcionado a criação para não perder o foco da campanha e dar destaque ao sapo cor-de-rosa.
Sapo cor-de-rosa?
- Que droga é essa de sapo cor-de-rosa aqui nesse anúncio!?
- Sei lá, foi a criação que fez, eu não sei de nada, só cobrei os caras.
O diretor de atendimento não podia jogar fora o anúncio, era o único em que o título fazia uma vaga menção ao produto. Teve que pensar em uma saída.
Chegaram ao cliente, uma imensa multinacional. Estão na sala de reunião com toda a equipe de marketing da empresa. O diretor de atendimento, uma velha raposa, apresenta o layout do sapo rosa falando da necessidade de um property para a marca e a importância do impacto que a comunicação deve ter junto às donas de casa, que uma imagem altamente diferenciada não permite a indiferença do público alvo e que um sapo, com certeza, sensibiliza a donas de casa de qualquer classe, e que o fato de ele ser rosa (uma cor altamente ligada ao universo feminino) anularia toda a imagem negativa do anúncio em questão.
Seja o que Deus quiser.
O diretor de marketing da multi ouviu tudo sem mudar sua expressão de jogador de pôquer. Houve aquela pausa que prenuncia hecatombes.
- O que vocês acham? - perguntou o chefâo de marketing para seus comparsas.
As respostas vieram pela ordem crescente na hierarquia local:
- Um pouco estranho.
- Bem estranho.
- Estranho é apelido.
- É sem dúvida a coisa mais estranha do mundo.
- Uma merda.
- Eu até que gostei do sapo cor-de-rosa - disse o chefão de marketing.
As mudanças de opinião seguiram a ordem decrescente.
- Uma merda que pode dar certo.
- Sem dúvida se é a coisa mais estranha do mundo é porque tem um certo appeal racional, Algo de especial.
- Especial é apelido.
- Bem especial.
- Ainda acho um pouco estranho - disse o mais baixo na hierarquia, que por manter sempre sua opinião foi despedido alguns meses depois.
No final valeu democraticamente a lei do mais forte. E o diretor de atendimento voltou para a agência pensando por que raios o chefão do marketing gostou do sapo cor-de-rosa. "Será que a idéia é boa? Não, não, impossível sair coisa boa da criação. Por que o chefão gostou? Na verdade eu é que sou um puta vendedor. Eu sou foda."
Na verdade, o chefão de marketing não sabia por que raios tinha aprovado aquele anúncio do sapo cor-de-rosa. Ele estava divagando sobre sua casa de campo, pensando como era gostosa aquela menina da agência que fala rápido, não prestou muita atenção no que o cara da agência falava. Mas, para falar tanto, ele devia estar falando coisas importantes. Não pegava bem passar por ignorante na frente de seus subalternos.
E agora o chefâo de marketing está num avião, levando numa pasta branca de papel-cartão um sapo cor-de-rosa, que deve ser apresentado para um chefe que é mais chefe que ele. "Vou ter que enrolar os gringos", pensou.
A reunião com o pessoal da América Latina começou com um clima tenso. Nenhum dos diretores de marketing dos vários países onde a empresa atuava tinha um trabalho decente para mostrar. Quando o diretor de marketing do Brasil mostrou o anúncio do sapo cor-de-rosa foi um alívio geral. Todo mundo começou a apoiar a idéia do brasileiro, pelo menos assim ninguém precisava justificar seu próprio fracasso.
- Me gusta mucho el sapo rosado.
- Sin duda tenemos un simbol.
O coordenador de marketing para toda a América Latina - o big-boss de todo mundo ali - não falava bem castelhano.
O big-boss dos cucarachas, como secretamente se autodenominava o coordenador de marketing para toda a América Latina, telefonou para a matriz no dia seguinte dizendo que havia unanimidade em torno de um conceito- Amazing concept- desenvolvido pelo marketing de Buenos Aires, ou será de Caracas? - I don't know, só sei que é de um lugar do Brazil.
O anúncio do sapo cor-de-rosa e o big-boss dos cucarachas estavam a caminho da matriz, em Atlanta. O chefão estava tranqüilo em relação ao sapo. Todos os diretores de marketing da América Latina haviam feito reports provando a viabilidade da estranha personagem anfíbia. Que os reports foram feitos para agradar a ele, o big-boss, ninguém contou. Nos reports havia números, e números fazem até um sapo cor-de-rosa existir. O coordenador de marketing para toda a América Latina entrou às 8:00h na sala do seu chefe, que estava reunido com toda a presidência da grande empresa multinacional de eletrodomésticos. Debaixo do braço, um sapo cor-de-rosa. Reunião de portas fechadas.
Às 8:05 a secretária escutou alguém gritar na sala:
- What the hell is that??!!??
Passaram-se seis meses.
O diretor de arte chegou às 11:00. Óculos escuros, cabelo molhado. A menina do atendimento havia deixado um grosso fichário na mesa da dupla de criação. Na capa do fichário lia-se: The Pink Frog. No fichário havia todas as normas de utilização do Pink Frog. O tipo de sapo que deve ser utilizado, qual a tonalidade do cor-de-rosa, as melhores posições em que deve ser fotografado, a proporção que deve ter o sapo, perdão, o Pink Frog, em relação ao formato do anúncio. Havia até a recomendação de que se usassem sapos vivos e que se pintasse o sapo por computador para evitar problemas com os ecologistas. O sapo foi completamente dissecado em duzentas páginas.
Por conta do sapo cor-de-rosa, muita gente foi promovida, tanto no cliente quanto na agência.
- Puxa, que legal! Eu sempre quis ser diretora de contas e mandar nesses babacas!
Todo mundo se deu bem, menos o diretor de arte. Parece que o cliente pediu a cabeça dele porque ele não seguiu as normas de aplicação do Pink Frog, e colocou em risco a seriedade do marketing do cliente.
O SAPO COR-DE-ROSA
O diretor de arte chegou às 10:30, óculos escuros, cabelo molhado. A menina do atendimento, desesperada, já estava na criação cobrando os anúncios.
- Pelo amor de deus! O cliente vai viajar hoje à tarde e quer ver os layouts pra poder mostrar para o diretor internacional que vai ter uma reunião com a coordenação da América Latina e eu vou me ferrar porque todo mundo tira o corpo fora!
O diretor de arte não tinha ainda achado aquela sacada gráfica, entende?
- Pelamordedeus! Pelamordedeus!
O diretor de arte, sem tirar os óculos nem dizer palavra, senta na frente do computador pensando: "Que saco, só um mês de prazo, o redator fez os títulos só há duas semanas, assim não dá pra trabalhar".
Quinze minutos depois, os layouts estão saindo da impressora. O redator vê os anúncios e comenta:
- Por que um sapo cor-de-rosa?
- Sei lá, é uma imagem bonita, instigante... - diz o jovem diretor de arte.
- Mas o anúncio é de eletrodoméstico. Que é que tem a ver?
O diretor de arte não queria entregar que não pensou em nada e que aquele sapo era a única imagem que tinha no arquivo do computador, mas nem deu tempo de ele inventar uma justificativa.
- Daquí esse troço que eu tô com pressa.
No caminho do cliente, no carro, o diretor de atendimento vê pela primeira vez os anúncios para poder dizer na reunião que tinha acompanhado o processo criativo todo, inclusive direcionado a criação para não perder o foco da campanha e dar destaque ao sapo cor-de-rosa.
Sapo cor-de-rosa?
- Que droga é essa de sapo cor-de-rosa aqui nesse anúncio!?
- Sei lá, foi a criação que fez, eu não sei de nada, só cobrei os caras.
O diretor de atendimento não podia jogar fora o anúncio, era o único em que o título fazia uma vaga menção ao produto. Teve que pensar em uma saída.
Chegaram ao cliente, uma imensa multinacional. Estão na sala de reunião com toda a equipe de marketing da empresa. O diretor de atendimento, uma velha raposa, apresenta o layout do sapo rosa falando da necessidade de um property para a marca e a importância do impacto que a comunicação deve ter junto às donas de casa, que uma imagem altamente diferenciada não permite a indiferença do público alvo e que um sapo, com certeza, sensibiliza a donas de casa de qualquer classe, e que o fato de ele ser rosa (uma cor altamente ligada ao universo feminino) anularia toda a imagem negativa do anúncio em questão.
Seja o que Deus quiser.
O diretor de marketing da multi ouviu tudo sem mudar sua expressão de jogador de pôquer. Houve aquela pausa que prenuncia hecatombes.
- O que vocês acham? - perguntou o chefâo de marketing para seus comparsas.
As respostas vieram pela ordem crescente na hierarquia local:
- Um pouco estranho.
- Bem estranho.
- Estranho é apelido.
- É sem dúvida a coisa mais estranha do mundo.
- Uma merda.
- Eu até que gostei do sapo cor-de-rosa - disse o chefão de marketing.
As mudanças de opinião seguiram a ordem decrescente.
- Uma merda que pode dar certo.
- Sem dúvida se é a coisa mais estranha do mundo é porque tem um certo appeal racional, Algo de especial.
- Especial é apelido.
- Bem especial.
- Ainda acho um pouco estranho - disse o mais baixo na hierarquia, que por manter sempre sua opinião foi despedido alguns meses depois.
No final valeu democraticamente a lei do mais forte. E o diretor de atendimento voltou para a agência pensando por que raios o chefão do marketing gostou do sapo cor-de-rosa. "Será que a idéia é boa? Não, não, impossível sair coisa boa da criação. Por que o chefão gostou? Na verdade eu é que sou um puta vendedor. Eu sou foda."
Na verdade, o chefão de marketing não sabia por que raios tinha aprovado aquele anúncio do sapo cor-de-rosa. Ele estava divagando sobre sua casa de campo, pensando como era gostosa aquela menina da agência que fala rápido, não prestou muita atenção no que o cara da agência falava. Mas, para falar tanto, ele devia estar falando coisas importantes. Não pegava bem passar por ignorante na frente de seus subalternos.
E agora o chefâo de marketing está num avião, levando numa pasta branca de papel-cartão um sapo cor-de-rosa, que deve ser apresentado para um chefe que é mais chefe que ele. "Vou ter que enrolar os gringos", pensou.
A reunião com o pessoal da América Latina começou com um clima tenso. Nenhum dos diretores de marketing dos vários países onde a empresa atuava tinha um trabalho decente para mostrar. Quando o diretor de marketing do Brasil mostrou o anúncio do sapo cor-de-rosa foi um alívio geral. Todo mundo começou a apoiar a idéia do brasileiro, pelo menos assim ninguém precisava justificar seu próprio fracasso.
- Me gusta mucho el sapo rosado.
- Sin duda tenemos un simbol.
O coordenador de marketing para toda a América Latina - o big-boss de todo mundo ali - não falava bem castelhano.
O big-boss dos cucarachas, como secretamente se autodenominava o coordenador de marketing para toda a América Latina, telefonou para a matriz no dia seguinte dizendo que havia unanimidade em torno de um conceito- Amazing concept- desenvolvido pelo marketing de Buenos Aires, ou será de Caracas? - I don't know, só sei que é de um lugar do Brazil.
O anúncio do sapo cor-de-rosa e o big-boss dos cucarachas estavam a caminho da matriz, em Atlanta. O chefão estava tranqüilo em relação ao sapo. Todos os diretores de marketing da América Latina haviam feito reports provando a viabilidade da estranha personagem anfíbia. Que os reports foram feitos para agradar a ele, o big-boss, ninguém contou. Nos reports havia números, e números fazem até um sapo cor-de-rosa existir. O coordenador de marketing para toda a América Latina entrou às 8:00h na sala do seu chefe, que estava reunido com toda a presidência da grande empresa multinacional de eletrodomésticos. Debaixo do braço, um sapo cor-de-rosa. Reunião de portas fechadas.
Às 8:05 a secretária escutou alguém gritar na sala:
- What the hell is that??!!??
Passaram-se seis meses.
O diretor de arte chegou às 11:00. Óculos escuros, cabelo molhado. A menina do atendimento havia deixado um grosso fichário na mesa da dupla de criação. Na capa do fichário lia-se: The Pink Frog. No fichário havia todas as normas de utilização do Pink Frog. O tipo de sapo que deve ser utilizado, qual a tonalidade do cor-de-rosa, as melhores posições em que deve ser fotografado, a proporção que deve ter o sapo, perdão, o Pink Frog, em relação ao formato do anúncio. Havia até a recomendação de que se usassem sapos vivos e que se pintasse o sapo por computador para evitar problemas com os ecologistas. O sapo foi completamente dissecado em duzentas páginas.
Por conta do sapo cor-de-rosa, muita gente foi promovida, tanto no cliente quanto na agência.
- Puxa, que legal! Eu sempre quis ser diretora de contas e mandar nesses babacas!
Todo mundo se deu bem, menos o diretor de arte. Parece que o cliente pediu a cabeça dele porque ele não seguiu as normas de aplicação do Pink Frog, e colocou em risco a seriedade do marketing do cliente.
Os comentários estão de volta!!!! Desta vez, do YACCS. Caros leitores, não se acanhem e postem os seus...
28.1.02
Eis uma notícia que vale a pena repetir: o Falaê is back! Um site em que os seres criativos imperam. Publiquei uma materinha sobre ele no Infoetc, aqui.
A Tecnovila Estrela, pioneiro projeto web-ecológico no RJ, também foi objeto de uma reportagem.
A Tecnovila Estrela, pioneiro projeto web-ecológico no RJ, também foi objeto de uma reportagem.
"Somente os amantes" -- Capítulo III
Marcel apresentou Otávio aos pais e emprestou-lhe roupas secas. Depois, sentaram-se à mesa e sorveram xícaras de chocolate acompanhadas de torradas, manteiga, geléia e biscoitos de leite.
-- Me fale de você, Marcel. Algo me diz que vamos ser bons amigos. E, se isso for presunção de minha parte, pelo menos prefiro escutar minhas próprias tolices que as dos outros.
-- Você me intriga.
-- Intrigar é o primeiro dever de um amigo. Trair é o segundo.
Marcel fez cara de incredulidade.
-- Há um terceiro?
-- Esse, até hoje ninguém descobriu.
-- Arrepender-se, talvez?
-- Nunca me arrependo do que fiz. Só do que não fiz... ainda.
"O que alguém como Otávio poderia achar de interessante em minha vida?", pensou Marcel. De qualquer modo, falou-lhe de sua infância solitária -- da qual poucas lembranças restavam, em especial a de um pequeno parque em Teresópolis onde ele costumava se sentar no balanço e se balançar durante horas a fio, sentindo o vento lhe tocar o rosto e as pernas, imaginando-se em qualquer outro lugar que não ali, em qualquer outra vida que não a sua. Queria, como todas as crianças e muitos adultos (que nada mais são que crianças que não podem mais usar roupas infantis), um lugar encantado, povoado de seres ferozes e corajosos, aventuras, guerras. Um lugar onde não houvesse chuva -- que ele odiava, ao contrário de Otávio -- e onde as plantas sobreviveriam assim mesmo. Seriam plantas mais fortes e não comestíveis (saladas, argh). Os sonhos sempre tinham sido seus melhores amigos.
Os sonhos e os livros. Amava romances de cavalaria, e a maior glória de sua vida fora representar o rei Artur no colégio. Gostava também de livros de terror, mas dormia toda vez que lia um clássico. O tempo passou e a solidão foi aparentemente se dissipando. Sua família se mudou para um prédio onde fez muitos amigos. Pela primeira vez, a adolescência chegando, sentia-se parte de um grupo. Brincavam de pique, jogavam bola, iam à praia, andavam de bicicleta, organizavam festas para dançar com as meninas. Ah! as meninas. Faltava uma namorada, que ele desejava ardentemente. Noites em claro se sucederam por causa desse maldito sonho. Não que ele estivesse especificamente apaixonado por alguém, mas sentia necessidade de tocar uma mulher, de beber-lhe o perfume, de beijar seus lábios até deixá-los pálidos com a voracidade de seu amor. É claro, pensava em sexo também. Achava, aliás, que tinha algum problema quanto a isso. Os amigos viviam contando vantagens sobre o número de vezes que conseguiam se masturbar. Diziam que gozavam quatro, cinco vezes. E ele não conseguia sequer uma ereção. Trancava-se no banheiro, imaginava todas as perversões possíveis, fechava os olhos, via-se com as meninas que mais admirava... e nada. Havia ereções, é claro, mas sempre nos momentos mais inoportunos, como em plena praia, daquelas que obrigam você a andar como um corcunda para disfarçar.
Seu pai notara que ele andava nervoso, e um dia chamou-o a um canto. Ofereceu-se para levá-lo a um bordel. Mas ele tinha um certo rancor do pai, que a vida toda ficara emudecido na poltrona da sala, lendo jornal ou vendo TV. Nunca lhe ensinara nada, nunca conversara com ele sobre sexo. Aprendeu com os amigos, e aprendeu-o da usual maneira distorcida: o sexo era algo sujo, era sacanagem, algo furtivo, proibido. Ficou impressionado. Quando era ainda ingênuo, e os caras mais velhos do playground insinuaram que seu pai e sua mãe haviam feito aquilo para dar-lhe a vida, negou-o furiosamente. "Meus pais jamais fariam isso", respondeu, para delírio dos outros, que caíram na gargalhada. Mais tarde, assim que descobriu que a história era diferente, culpou o pai. E quando ele se candidatou a guia dos prazeres mundanos, recusou a oferta polidamente. "Não, obrigado, pai. Cada coisa a seu tempo". Convenceu a si mesmo de que sexo não podia ser dissociado de amor. Queria tê-lo com alguém que se importasse com ele, e com quem se importasse também. No fundo, porém, sabia que não era assim. Sonhava à noite com prostitutas deslumbrantes à sua mercê, lambendo todo o seu corpo bem devagar, beijando-lhe os cabelos, os mamilos, o umbigo, as coxas, as articulações e por fim o pênis. Na atmosfera enevoada dos sonhos, elas bebiam sofregamente o sêmen, e pediam sempre mais, como se ele fosse uma droga. Acordava suado, ofegante, a cama molhada e pegajosa. A mãe não agüentava mais lavar os lençóis. Até o momento, sequer beijara uma mulher na boca. E sabia agora que, mesmo tendo feito bons amigos, era um solitário por natureza. A solidão lhe era tão intrínseca quanto a cor de seus olhos, podia senti-la até no meio de uma multidão. Vivia insatisfeito, como quem não consegue se acomodar numa posição e assim permanecer. Não tinha irmãos, e achava que um talvez o tivesse tirado desse incômodo estado.
De resto, não pensava muito no futuro. Não queria ser rico, não se importava com o mundo material ("exceto os corpos de mulheres", corrigiu Otávio). Queria preencher a lacuna que intuía haver em sua alma. Agora estava no último ano do segundo grau e ia prestar vestibular para Comunicação, não pela carreira, mas pelas pessoas que diziam existir no campus. Pessoas instigantes, de múltiplos interesses, criativas, sedentas de experiências novas, como ele.
-- Antigamente, a experiência era o nome que os homens davam a seus erros, como disse Oscar. Hoje, é o nome que dão a sua inércia. Seus erros tornaram se inomináveis...
-- Oscar?
-- O único escritor que não precisava ter escrito um livro para entrar na história da literatura. Oscar Wilde.
-- Seu guru? Fale você agora, Otávio, é sua vez.
Marcel apresentou Otávio aos pais e emprestou-lhe roupas secas. Depois, sentaram-se à mesa e sorveram xícaras de chocolate acompanhadas de torradas, manteiga, geléia e biscoitos de leite.
-- Me fale de você, Marcel. Algo me diz que vamos ser bons amigos. E, se isso for presunção de minha parte, pelo menos prefiro escutar minhas próprias tolices que as dos outros.
-- Você me intriga.
-- Intrigar é o primeiro dever de um amigo. Trair é o segundo.
Marcel fez cara de incredulidade.
-- Há um terceiro?
-- Esse, até hoje ninguém descobriu.
-- Arrepender-se, talvez?
-- Nunca me arrependo do que fiz. Só do que não fiz... ainda.
"O que alguém como Otávio poderia achar de interessante em minha vida?", pensou Marcel. De qualquer modo, falou-lhe de sua infância solitária -- da qual poucas lembranças restavam, em especial a de um pequeno parque em Teresópolis onde ele costumava se sentar no balanço e se balançar durante horas a fio, sentindo o vento lhe tocar o rosto e as pernas, imaginando-se em qualquer outro lugar que não ali, em qualquer outra vida que não a sua. Queria, como todas as crianças e muitos adultos (que nada mais são que crianças que não podem mais usar roupas infantis), um lugar encantado, povoado de seres ferozes e corajosos, aventuras, guerras. Um lugar onde não houvesse chuva -- que ele odiava, ao contrário de Otávio -- e onde as plantas sobreviveriam assim mesmo. Seriam plantas mais fortes e não comestíveis (saladas, argh). Os sonhos sempre tinham sido seus melhores amigos.
Os sonhos e os livros. Amava romances de cavalaria, e a maior glória de sua vida fora representar o rei Artur no colégio. Gostava também de livros de terror, mas dormia toda vez que lia um clássico. O tempo passou e a solidão foi aparentemente se dissipando. Sua família se mudou para um prédio onde fez muitos amigos. Pela primeira vez, a adolescência chegando, sentia-se parte de um grupo. Brincavam de pique, jogavam bola, iam à praia, andavam de bicicleta, organizavam festas para dançar com as meninas. Ah! as meninas. Faltava uma namorada, que ele desejava ardentemente. Noites em claro se sucederam por causa desse maldito sonho. Não que ele estivesse especificamente apaixonado por alguém, mas sentia necessidade de tocar uma mulher, de beber-lhe o perfume, de beijar seus lábios até deixá-los pálidos com a voracidade de seu amor. É claro, pensava em sexo também. Achava, aliás, que tinha algum problema quanto a isso. Os amigos viviam contando vantagens sobre o número de vezes que conseguiam se masturbar. Diziam que gozavam quatro, cinco vezes. E ele não conseguia sequer uma ereção. Trancava-se no banheiro, imaginava todas as perversões possíveis, fechava os olhos, via-se com as meninas que mais admirava... e nada. Havia ereções, é claro, mas sempre nos momentos mais inoportunos, como em plena praia, daquelas que obrigam você a andar como um corcunda para disfarçar.
Seu pai notara que ele andava nervoso, e um dia chamou-o a um canto. Ofereceu-se para levá-lo a um bordel. Mas ele tinha um certo rancor do pai, que a vida toda ficara emudecido na poltrona da sala, lendo jornal ou vendo TV. Nunca lhe ensinara nada, nunca conversara com ele sobre sexo. Aprendeu com os amigos, e aprendeu-o da usual maneira distorcida: o sexo era algo sujo, era sacanagem, algo furtivo, proibido. Ficou impressionado. Quando era ainda ingênuo, e os caras mais velhos do playground insinuaram que seu pai e sua mãe haviam feito aquilo para dar-lhe a vida, negou-o furiosamente. "Meus pais jamais fariam isso", respondeu, para delírio dos outros, que caíram na gargalhada. Mais tarde, assim que descobriu que a história era diferente, culpou o pai. E quando ele se candidatou a guia dos prazeres mundanos, recusou a oferta polidamente. "Não, obrigado, pai. Cada coisa a seu tempo". Convenceu a si mesmo de que sexo não podia ser dissociado de amor. Queria tê-lo com alguém que se importasse com ele, e com quem se importasse também. No fundo, porém, sabia que não era assim. Sonhava à noite com prostitutas deslumbrantes à sua mercê, lambendo todo o seu corpo bem devagar, beijando-lhe os cabelos, os mamilos, o umbigo, as coxas, as articulações e por fim o pênis. Na atmosfera enevoada dos sonhos, elas bebiam sofregamente o sêmen, e pediam sempre mais, como se ele fosse uma droga. Acordava suado, ofegante, a cama molhada e pegajosa. A mãe não agüentava mais lavar os lençóis. Até o momento, sequer beijara uma mulher na boca. E sabia agora que, mesmo tendo feito bons amigos, era um solitário por natureza. A solidão lhe era tão intrínseca quanto a cor de seus olhos, podia senti-la até no meio de uma multidão. Vivia insatisfeito, como quem não consegue se acomodar numa posição e assim permanecer. Não tinha irmãos, e achava que um talvez o tivesse tirado desse incômodo estado.
De resto, não pensava muito no futuro. Não queria ser rico, não se importava com o mundo material ("exceto os corpos de mulheres", corrigiu Otávio). Queria preencher a lacuna que intuía haver em sua alma. Agora estava no último ano do segundo grau e ia prestar vestibular para Comunicação, não pela carreira, mas pelas pessoas que diziam existir no campus. Pessoas instigantes, de múltiplos interesses, criativas, sedentas de experiências novas, como ele.
-- Antigamente, a experiência era o nome que os homens davam a seus erros, como disse Oscar. Hoje, é o nome que dão a sua inércia. Seus erros tornaram se inomináveis...
-- Oscar?
-- O único escritor que não precisava ter escrito um livro para entrar na história da literatura. Oscar Wilde.
-- Seu guru? Fale você agora, Otávio, é sua vez.
25.1.02
Esse tal de Deus é mesmo muito hilário. Olha só esse post que tirei do blog divino:
"Pergunta: Deus, fico imaginando a falta de criatividade que existe na confecção de animais como a lhama, o camelo e o dromedário. Por que, ao invés de fazer um animal com as características dos três, você fica experimentando as variações?
Resposta: O lance de animais parecidos é problema do pessoal do Departamento de Criação. Eu lhes mando um pedido e eles nunca acertam de primeira o que peço. Sempre tenho que pedir pra refazerem a parada. E como aqui o pessoal roda todo o sistema no Windows, ninguém consegue desinstalar a primeira versão dos bichos que cria. Então eles renomeiam a parada (de Guanaco para Lhama, daí para Camelo, depois para Dromedário, etc...) e instalam por cima a criatura nova."
Mas peraí: Céu com Windows? Acho que seria o caso de rodar Linux, né não? ;-))))
"Pergunta: Deus, fico imaginando a falta de criatividade que existe na confecção de animais como a lhama, o camelo e o dromedário. Por que, ao invés de fazer um animal com as características dos três, você fica experimentando as variações?
Resposta: O lance de animais parecidos é problema do pessoal do Departamento de Criação. Eu lhes mando um pedido e eles nunca acertam de primeira o que peço. Sempre tenho que pedir pra refazerem a parada. E como aqui o pessoal roda todo o sistema no Windows, ninguém consegue desinstalar a primeira versão dos bichos que cria. Então eles renomeiam a parada (de Guanaco para Lhama, daí para Camelo, depois para Dromedário, etc...) e instalam por cima a criatura nova."
Mas peraí: Céu com Windows? Acho que seria o caso de rodar Linux, né não? ;-))))
A Valeskinha passou aqui no jornal ainda agora e me ligou. Fiquei arrasado, não pude descer, devido ao fechamento. Ficou para a semana, querida. Que pena! Mas tomaremos uma gelada brevemente, assim que entrar fevereiro. That's a promise.
Como comentei direto de lá em meu outro blog, visitei a Tecnovila Estrela do engenheiro/analista Antônio Kleber de Araújo, no norte do estado. O pontapé inicial para uma comunidade web totalmente integrada a um ecossistema belíssimo. Pretendo voltar. O homem tem uma concepção de mundo, sociedade e tecnologia que sempre nos faz pensar...
22.1.02
Onde já se viu aniversário sem aniversariante? Pois o Gustones não apareceu no seu, no sábado, no Bar do Ernesto, tomado que estava de uma amigdalite atroz (que se seguiu a uma otite feroz). Pobre homem. Os convivas ficaram arrasados, mas nem por isso deixaram de fazer o que ele gostaria que fizessem: beberam e dançaram até de manhã. Só faltou você, meu caro Gustones. Estimo as melhoras o mais rápido possível para que tomemos umas geladas e o Aerosilva se reúna para um som.
Na dita festa reencontrei a doce Valeska e também a bela Crib (veja post abaixo), que me apresentou o Léo Lima. Ambos escrevem para o site Cena Urbana. Estavam na bagunça também o Maloca, o Sr. "Não é caldo" Maggi, e um monte de coleguinhas da imprensa. Saí de lá às cinco da manhã. What a night!
Em tempo: conheci finalmente a Alessandra Archer, cujos minicontos amo de paixão. Foi sem dúvida uma emoção encontrá-la ao vivo e a cores. E bati bons papos com meu velho amigo Fernando de Oliveira, o grande Feroli, que sabe tudo de bits e bytes. Só precisa abrir um blog para compartilhar sua sapiência com a gALLera.
Na dita festa reencontrei a doce Valeska e também a bela Crib (veja post abaixo), que me apresentou o Léo Lima. Ambos escrevem para o site Cena Urbana. Estavam na bagunça também o Maloca, o Sr. "Não é caldo" Maggi, e um monte de coleguinhas da imprensa. Saí de lá às cinco da manhã. What a night!
Em tempo: conheci finalmente a Alessandra Archer, cujos minicontos amo de paixão. Foi sem dúvida uma emoção encontrá-la ao vivo e a cores. E bati bons papos com meu velho amigo Fernando de Oliveira, o grande Feroli, que sabe tudo de bits e bytes. Só precisa abrir um blog para compartilhar sua sapiência com a gALLera.
A webwriter Crib Tanaka escreveu um texto muito maneiro sobre os usos do ICQ para o site Banheiro Feminino. Como sempre, suas palavras exalam ironia, acidez e sensibilidade. Leia aqui.
Apesar de todas as mazelas do Rio, com dengue, blecaute, néons do tráfico e muita miséria e violência, surpreendi-me ao descobrir que Deus é carioca. E tem um dos blogs mais divertidos do planeta, o Fale com Deus. Realmente vale a pena consultá-Lo de vez em quando (com todo o cuidado para não aborrecê-Lo, que Ele é irascível ;-)))
18.1.02
Eu nunca mais vou me esquecer, quando trabalhava na imprensa musical, séculos atrás, de uma carta de um fã de heavy metal furioso com algumas figuras. Tinha um trecho muito hilário, mais ou menos assim:
"Tem uma galera que vive dizendo que os caras do Kiss adoram o demo, que o nome da banda significa Knights In Satan's Service [um hoax clássico] etc, etc. Agora, esse mesmo pessoal se amarra em AC/DC. Mas e as músicas deles? Tem "Highway to Hell", "Hell's Bells" e "Hell Ain't A Bad Place To Be"!!!! Pô, isso é ou não se amarrar no coisa ruim?"
"Tem uma galera que vive dizendo que os caras do Kiss adoram o demo, que o nome da banda significa Knights In Satan's Service [um hoax clássico] etc, etc. Agora, esse mesmo pessoal se amarra em AC/DC. Mas e as músicas deles? Tem "Highway to Hell", "Hell's Bells" e "Hell Ain't A Bad Place To Be"!!!! Pô, isso é ou não se amarrar no coisa ruim?"
Um conto sobre a rejeição.
c:\fiction\historiadeamor.exe
Ele estava em seu segundo casamento quando a conheceu (o primeiro fora com uma velha amiga que o abandonara ao decidir estudar em Londres). A segunda mulher salvara-lhe a vida e, durante algum tempo, viveram uma paixão tórrida de infindáveis bebedeiras no Lamas e bestialidades num aprazível hotel próximo dali.
Mas o tempo foi passando e o tesão diminuindo. Até que ambos puseram placas em seus respectivos púbis: "R.I.P.", diziam. E ele retirou-se para o trabalho, para não pensar. Um dia ela apareceu, num evento motivacional desses bem imbecis, piores que qualquer culto. Carinhosa, afável, sorriso fácil, um jeito de menina impossível de passar despercebido. O tesômetro acusou a mudança de paradigma.
Ficou sem vê-la por um ano e nove meses, quando deu com ela numa conferência do Lucchesi. Saíram dali para um chope, esticado até as primeiras horas da manhã. Falaram de tudo: literatura, música, família, objetivos, desejos, desilusões, viagens. Apaixonaram-se, ele mais do que ela.
Como disse mesmo o Wilde? Ah, sim: há duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer; a outra, consegui-lo. Ele passara anos rezando fervorosamente por uma paixão, por algo que o tirasse do marasmo. E ela veio -- mas não o quis. Ele declarou-se desajeitadamente a princípio, ela pediu tempo. Meses depois, ela teve uma grande desilusão e recorreu a sua companhia para sentir-se querida. A visão de suas lágrimas o comoveu e ele sentiu uma onda de ternura e desejo invadi-lo, tomando-lhe até o último capilar. Escreveu-lhe então como uma torrente; depois arrastou-a consigo para um bar e não hesitou, dizendo-lhe que desejava ser seu homem para o bem ou para o mal, que largaria tudo a um comando seu.
Ela chorou um pouco, mas ainda assim resistiu. Confessou que amava outro, disse-lhe que não sabia o que responder. Ele não desistiu, dizendo a si mesmo que a dúvida significava uma chance. Mas, novamente, o tempo foi passando e, de cada vez que a encontrava, ela estava com uma companhia diferente (sem deixar de fazer charme para os outros, ele incluído). Ele foi percebendo que seu jeito afável era fruto da insegurança; que ela sutilmente agradava a todos para se sentir desejada, "cozinhando" em fogo brando os que não haviam sido eleitos; que o jeito de menina revelava grande imaturidade. Apesar (ou por causa) de todas essas constatações, uma raiva sinuosa foi crescendo em suas vísceras, tomando pouco a pouco o estômago, a laringe e por fim seus dentes, que passaram a conferir um gosto plúmbeo à torta de limão que ele tanto amava.
Uma noite, numa festa, viu-a beijar outro. E perdeu o sono nas duas madrugadas subseqüentes. Então, decidiu que ela não existia mais para ele: repetiu isso insistentemente nas semanas seguintes diante do espelho até que, quando a viu de novo, logrou ignorá-la com absoluto êxito. Ela estranhou, mas nada disse. Entretanto, no que isso passou a ser o padrão em todos os encontros, percebeu como o desprezo dele descia lépido pela escala Kelvin. E mudou. De uma hora para outra, queria-o perto dela, buscava seu conselho, tentava fazê-lo rir -- tudo em vão. Ele gradualmente reduzira suas reações perto dela ao mínimo necessário para a sobrevivência. Mal respirava. Aos poucos tornou-se um gadget tamanho família, sem fio, com cada gesto devidamente controlado pelas instruções via software que circulavam por sua cabeça.
A insegurança dela não conseguiu suportar tamanha afronta. Humilhou-se: pediu-lhe perdão, suplicou que dissesse alguma coisa.
Impassível, ele voltou-se e, olhar distante, ouviu-se respondendo:
-- Há um erro de disco irrecuperável no arquivo: coração.doc.
Ato contínuo, deu Alt+F4 com o polegar na ponta do nariz e o indicador na testa, arrotou e caiu fulminado no chão.
c:\fiction\historiadeamor.exe
Ele estava em seu segundo casamento quando a conheceu (o primeiro fora com uma velha amiga que o abandonara ao decidir estudar em Londres). A segunda mulher salvara-lhe a vida e, durante algum tempo, viveram uma paixão tórrida de infindáveis bebedeiras no Lamas e bestialidades num aprazível hotel próximo dali.
Mas o tempo foi passando e o tesão diminuindo. Até que ambos puseram placas em seus respectivos púbis: "R.I.P.", diziam. E ele retirou-se para o trabalho, para não pensar. Um dia ela apareceu, num evento motivacional desses bem imbecis, piores que qualquer culto. Carinhosa, afável, sorriso fácil, um jeito de menina impossível de passar despercebido. O tesômetro acusou a mudança de paradigma.
Ficou sem vê-la por um ano e nove meses, quando deu com ela numa conferência do Lucchesi. Saíram dali para um chope, esticado até as primeiras horas da manhã. Falaram de tudo: literatura, música, família, objetivos, desejos, desilusões, viagens. Apaixonaram-se, ele mais do que ela.
Como disse mesmo o Wilde? Ah, sim: há duas tragédias na vida: uma é não conseguir o que se quer; a outra, consegui-lo. Ele passara anos rezando fervorosamente por uma paixão, por algo que o tirasse do marasmo. E ela veio -- mas não o quis. Ele declarou-se desajeitadamente a princípio, ela pediu tempo. Meses depois, ela teve uma grande desilusão e recorreu a sua companhia para sentir-se querida. A visão de suas lágrimas o comoveu e ele sentiu uma onda de ternura e desejo invadi-lo, tomando-lhe até o último capilar. Escreveu-lhe então como uma torrente; depois arrastou-a consigo para um bar e não hesitou, dizendo-lhe que desejava ser seu homem para o bem ou para o mal, que largaria tudo a um comando seu.
Ela chorou um pouco, mas ainda assim resistiu. Confessou que amava outro, disse-lhe que não sabia o que responder. Ele não desistiu, dizendo a si mesmo que a dúvida significava uma chance. Mas, novamente, o tempo foi passando e, de cada vez que a encontrava, ela estava com uma companhia diferente (sem deixar de fazer charme para os outros, ele incluído). Ele foi percebendo que seu jeito afável era fruto da insegurança; que ela sutilmente agradava a todos para se sentir desejada, "cozinhando" em fogo brando os que não haviam sido eleitos; que o jeito de menina revelava grande imaturidade. Apesar (ou por causa) de todas essas constatações, uma raiva sinuosa foi crescendo em suas vísceras, tomando pouco a pouco o estômago, a laringe e por fim seus dentes, que passaram a conferir um gosto plúmbeo à torta de limão que ele tanto amava.
Uma noite, numa festa, viu-a beijar outro. E perdeu o sono nas duas madrugadas subseqüentes. Então, decidiu que ela não existia mais para ele: repetiu isso insistentemente nas semanas seguintes diante do espelho até que, quando a viu de novo, logrou ignorá-la com absoluto êxito. Ela estranhou, mas nada disse. Entretanto, no que isso passou a ser o padrão em todos os encontros, percebeu como o desprezo dele descia lépido pela escala Kelvin. E mudou. De uma hora para outra, queria-o perto dela, buscava seu conselho, tentava fazê-lo rir -- tudo em vão. Ele gradualmente reduzira suas reações perto dela ao mínimo necessário para a sobrevivência. Mal respirava. Aos poucos tornou-se um gadget tamanho família, sem fio, com cada gesto devidamente controlado pelas instruções via software que circulavam por sua cabeça.
A insegurança dela não conseguiu suportar tamanha afronta. Humilhou-se: pediu-lhe perdão, suplicou que dissesse alguma coisa.
Impassível, ele voltou-se e, olhar distante, ouviu-se respondendo:
-- Há um erro de disco irrecuperável no arquivo: coração.doc.
Ato contínuo, deu Alt+F4 com o polegar na ponta do nariz e o indicador na testa, arrotou e caiu fulminado no chão.
17.1.02
Recebi do meu velho amigo Carlos Brito, mestre em Diplomacy e em muitas outras artes e ciências, alguns dos meus antigos escritos que tinha deixado sob sua guarda. Alguns deles, como diálogos de peças que escrevi nos anos 80, virão logo logo parar aqui. Brito me prometeu enviar ainda alguns dos seus poemas, que contêm imagens vívidas. Também é autor de grandes contos, como "A profecia", "O espelho", "Navios queimados" e "O monstro". Ele deveria abrir um blog para publicá-los.
15.1.02
Tcharan!! Tcharaan!! Tcharaaan!!!! Caros amigos, é meu dever informar, tomado de emoção, que vocês agora vão ler o primeiro conto escrito a quatro mãos por Crib Tanaka e André Machado. Uma dupla, que espero, vai bolar mais coisas para entrar em futuros posts. Crib me mandou a história semana passada e perguntou-me se não queria terminá-la. Fiquei logo com as mãos comichando, encarei como um desafio, e concluí o conto ontem. Ela deu os retoques finais, com a sutileza que lhe é característica, e voilà! Tomara que vocês gostem.
EUGÊNIA E O TEMPO
por Crib Tanaka e André Machado
A vida, marcada por um relógio desses irritantes que não param de tiquetaquear, não a inquietava até então. Era bom saber em que parte do dia estava. Tinha fixação por relógios. Coloridos, de marca, caros, falsificados, com pulseiras grossas, finas, digitais -- todos a fascinavam. Aprendera a ver horas antes de ler. E, desde que fizera tamanha descoberta -- poder informar que horas eram --, sempre que podia, um marcador de tempo comprava.
Às seis horas da manhã em ponto, durante cinco anos, soaram três toques, vindos de três lugares diferentes de sua pequena mas bem arrumada casa. Morava sozinha e gostava dessa pseudo-solidão misturada à liberdade. Assim que despertava, caminhava em direção à uma bancada, que ficava no meio da cozinha, onde tomava o café-da-manhã.
Pão, manteiga e café-com-leite. De pantufas e camisão, lia as notícias políticas. Mordia o pão lentamente, enquanto mexia, sem olhar, a mistura líquida dentro da xícara. Sempre respingava um pouco no jornal. Irritada com a eterna desatenção, chiava e limpava a sujeira com um guardanapo, atirando-o na lixeira em seguida. Todos os dias, a mesma coisa.
A banheira de cerâmica rosa era o seu lugar preferido da casa. Herdara-a da avó. Era dessas abauladas, que se firmam em quatro pés trabalhados -- que por sua vez se abrem ao encostar no chão, como se sentissem o peso de quem se banha deitado. Lá, passava, no mínimo, uma hora por dia. Água quente, vaporosa, misturada a sais relaxantes. Era muito tensa. Acreditava nos óleos achar para isso solução.
Os cabelos, até os ombros, eram bem cuidados, de um castanho muito claro, por vezes louro. Os pés, sempre pintados de cores claras, eram macios como se nunca houvessem encostado em superfície áspera. Sabia há pouco tempo que suas mãos longas chamavam a atenção. Ela o percebera no dia em que as pousara sobre uma mesa de reunião. Todos os olhares voltaram-se para seus dedos finos, suas unhas compridas. A partir de então, passou a dar-lhes especial atenção.
Trabalhava numa escola particular. Ganhava bem. Com o salário privilegiado, comprava livros, CDs, objetos de decoração e relógios. Por conta destes, muitas vezes mudava móveis de lugar ou até mesmo novos comprava. Eram eles a atração principal, artefato imprescindível para a harmonia do que chamava lar. Para ela, relógios eram a alma de uma casa e o retrato do senso de organização que toda mulher deveria ter.
Os relógios soaram. Seis da manhã. Estava cansada, pesada, estava levando uma vida desgastante demais, de muito trabalho, mas agora não era hora de pensar nisso. Levantou-se e seguiu a rotina de sempre: café com leite, banheira... tudo foi feito com muita calma, até lembrar-se de que teria que estar mais cedo no colégio. Arrumou-se a partir de então com pressa, coração acelerado, calor nas maçãs do rosto. Pegou a bolsa e foi andando a passos largos, até o carro na garagem. Tinha pânico de atrasos. Atrasos são sinônimo de irresponsabilidade, sempre dizia. Ligou o carro, deu ré e saiu sem mesmo o portão fechar. Não poderia perder tempo.
Estacionou o carro na primeira vaga que viu, bateu a porta com força e xingou bem baixinho ao ver que nela havia prendido um pedaço do vestido. Andando com pressa, chegou ao colégio e deparou-se com os imensos portões de madeira fechados. Estranhou. Tinha certeza de que a reunião estava marcada para aquele dia, naquele horário. Deu a volta, gritou um alô, mas só ouviu o som da própria voz ecoando. Sentou-se então nas escadas. O melhor seria esperar um pouco. Quando a coluna chiou, passou o apoio do corpo para uma das mãos e ergueu a outra. Olhou para o pulso e mal pôde acreditar. Não estava com relógio algum.
Sentia falta de ar, tremia e não conseguia levantar-se dali. Como poderia mexer-se? Ninguém havia chegado. Há quanto tempo estaria esperando, sentada ali, naquela escadaria de mármore gelada, gasta, sem cor? Não sabia. Não sabia. O melhor a fazer é esperar alguém chegar. Sim, é o melhor a fazer -- dizia a si mesma. E logo sentia falta de ar de novo. Suava e tentava entender por que isso estava acontecendo logo com ela, que sempre detestara esperar, logo com ela, que nunca se atrasara, logo com ela, que nunca havia se perdido no tempo, que sempre acreditara em finais felizes.
Respirou fundo. Sentada na escada, acalmou-se e passou a observar, em vez de apenas registrar imagens. Chegou a franzir a testa quando viu as folhas voarem, as nuvens cobrirem o sol de inverno e os pássaros pousarem nas árvores que enfeitavam o campus. Nunca havia reparado em nada do que estava vendo. Achou graça daquilo tudo, dos esquilos escondidos atrás de alguns troncos, das cócegas que sentia quando o vento puxava seus cabelos. E ficou ali. Horas.
Badalou então o sino, chamando os fiéis para a missa. Seis horas, pensou. Eugênia deu-se conta de que esperara ali por mais de dez horas. Estranho, não estava cansada... Mas ergueu-se, afinal não era possível que alguém mais viesse. Começou a andar em direção ao carro. De repente, viu-se em meio a uma neblina. Caminhou pelo campus, que adquirira um cheio mais forte de mato, de terra fecundada, sem conseguir achar a saída. O muro que cercava o lugar parecia haver sumido. E ao longe, ouvia o que lhe pareciam ser cascos de cavalos.
Súbito, a neblina se dissipou e ela se achou no meio de um prado florido, apenas parcialmente tocado por mãos humanas. O sino continuava a bimbalhar na igreja, que agora podia ser vista não muito longe dali, já que não existia mais muro. E a igreja, meu Deus, estava novinha em folha, sem uma rachadura, sem um desbotado em sua fachada. O sino refulgia à luz do sol -- agora não mais encoberto por nuvens. Eugênia ficou petrificada por um momento. Onde vira aquela cena? Lembrou-se num átimo: num trabalho fotográfico-digital publicado recentemente num jornal, que mostrava pontos da cidade em várias épocas diferentes. Estava dentro da imagem do bairro... em 1701.
Impossível, pensou. Mas, antes que fizesse qualquer outra reflexão, um enorme cavalo negro surgiu de uma picada à sua direita, montado por um homem igualmente negro. Dono de lábios carnudos e olhos em brasa, ele estalava um chicote à medida que galopava em sua direção e berrava uma frase que ela não conseguia entender. Eugênia continuou imóvel, embora tremesse da cabeça aos pés: quando percebeu que seria chibateada pelo cavaleiro, apertou os olhos e fechou as mãos com força, segundos antes de a dor chegar, e só então entendeu o brado do homem:
-- Liberta-te de Cronos!
Ouviu o vento zunir em torno do chicote e começou a gritar, quando percebeu que sua boca estava cheia de água e não conseguia respirar. Bolhas em profusão saíram de seus lábios e narinas, e por um instante, imaginou que a chicotada a jogara num pântano ou num rio oculto pela mata.
Mas não sentira dor nenhuma. A água era quente e perfumada.
Emergiu então da banheira, ofegando, deglutindo em grandes haustos o ar querido. Dormira? Sonhara? Que horas eram? E a reunião? Pulou desajeitadamente da água, quase caindo no banheiro e correu para a sala. Mas, não era mais a sala que ela conhecia. Não havia mais um relógio sequer. Gritou e foi de cômodo em cômodo, procurando um mostrador que a salvasse. Nada. Nem o reloginho da Minnie que comprara para a sobrinha. Nem aquele calendário que ganhara na mercearia estava mais na geladeira. Aliás, nem geladeira mais havia. Na verdade, só o que restava de sua amada mobília bem arrumada era uma mesa e algumas cadeiras. Todas estranhamente envelhecidas.
Também não havia mais armário, nem roupas. Pelo menos lhe restara o roupão pendurado atrás da porta do banheiro. Vestiu-o, calçou os chinelos e saiu, atordoada, para a luz do dia.
O que viu é impossível de descrever com clareza. Bastará dizer que adentrou o maior bosque do mundo, com aléias adornadas com flores fragrantes, de todas as cores; aléias que se curvavam e bifurcavam ad aeternum e levavam a cascatas cujo frescor fazia-se perfume; a tais quedas se opunham finas folhas de prata e pomares tão suculentos que seria possível de seus frutos alimentar-se com o olhar. Em todas estas paisagens luxuriantes que se alternavam, Eugênia ouvia conversas de animais. E entendia seus pensamentos simples e ordeiros, tão diferentes da angústia que acompanhara por toda a sua vida.
Não havia nenhum relógio.
Quando a encontraram, ainda sentada nas escadas na segunda-feira, levemente inclinada contra o portão, tinha aquele meio-sorriso giocondiano que às vezes assoma à face dos enfartados; e sua expressão era tão cheia de beatitude que um dos assistentes do legista, mais jovem e ainda sensível aos caprichos da Ceifadora, pensou: ela morreu feliz para sempre.
EUGÊNIA E O TEMPO
por Crib Tanaka e André Machado
A vida, marcada por um relógio desses irritantes que não param de tiquetaquear, não a inquietava até então. Era bom saber em que parte do dia estava. Tinha fixação por relógios. Coloridos, de marca, caros, falsificados, com pulseiras grossas, finas, digitais -- todos a fascinavam. Aprendera a ver horas antes de ler. E, desde que fizera tamanha descoberta -- poder informar que horas eram --, sempre que podia, um marcador de tempo comprava.
Às seis horas da manhã em ponto, durante cinco anos, soaram três toques, vindos de três lugares diferentes de sua pequena mas bem arrumada casa. Morava sozinha e gostava dessa pseudo-solidão misturada à liberdade. Assim que despertava, caminhava em direção à uma bancada, que ficava no meio da cozinha, onde tomava o café-da-manhã.
Pão, manteiga e café-com-leite. De pantufas e camisão, lia as notícias políticas. Mordia o pão lentamente, enquanto mexia, sem olhar, a mistura líquida dentro da xícara. Sempre respingava um pouco no jornal. Irritada com a eterna desatenção, chiava e limpava a sujeira com um guardanapo, atirando-o na lixeira em seguida. Todos os dias, a mesma coisa.
A banheira de cerâmica rosa era o seu lugar preferido da casa. Herdara-a da avó. Era dessas abauladas, que se firmam em quatro pés trabalhados -- que por sua vez se abrem ao encostar no chão, como se sentissem o peso de quem se banha deitado. Lá, passava, no mínimo, uma hora por dia. Água quente, vaporosa, misturada a sais relaxantes. Era muito tensa. Acreditava nos óleos achar para isso solução.
Os cabelos, até os ombros, eram bem cuidados, de um castanho muito claro, por vezes louro. Os pés, sempre pintados de cores claras, eram macios como se nunca houvessem encostado em superfície áspera. Sabia há pouco tempo que suas mãos longas chamavam a atenção. Ela o percebera no dia em que as pousara sobre uma mesa de reunião. Todos os olhares voltaram-se para seus dedos finos, suas unhas compridas. A partir de então, passou a dar-lhes especial atenção.
Trabalhava numa escola particular. Ganhava bem. Com o salário privilegiado, comprava livros, CDs, objetos de decoração e relógios. Por conta destes, muitas vezes mudava móveis de lugar ou até mesmo novos comprava. Eram eles a atração principal, artefato imprescindível para a harmonia do que chamava lar. Para ela, relógios eram a alma de uma casa e o retrato do senso de organização que toda mulher deveria ter.
Os relógios soaram. Seis da manhã. Estava cansada, pesada, estava levando uma vida desgastante demais, de muito trabalho, mas agora não era hora de pensar nisso. Levantou-se e seguiu a rotina de sempre: café com leite, banheira... tudo foi feito com muita calma, até lembrar-se de que teria que estar mais cedo no colégio. Arrumou-se a partir de então com pressa, coração acelerado, calor nas maçãs do rosto. Pegou a bolsa e foi andando a passos largos, até o carro na garagem. Tinha pânico de atrasos. Atrasos são sinônimo de irresponsabilidade, sempre dizia. Ligou o carro, deu ré e saiu sem mesmo o portão fechar. Não poderia perder tempo.
Estacionou o carro na primeira vaga que viu, bateu a porta com força e xingou bem baixinho ao ver que nela havia prendido um pedaço do vestido. Andando com pressa, chegou ao colégio e deparou-se com os imensos portões de madeira fechados. Estranhou. Tinha certeza de que a reunião estava marcada para aquele dia, naquele horário. Deu a volta, gritou um alô, mas só ouviu o som da própria voz ecoando. Sentou-se então nas escadas. O melhor seria esperar um pouco. Quando a coluna chiou, passou o apoio do corpo para uma das mãos e ergueu a outra. Olhou para o pulso e mal pôde acreditar. Não estava com relógio algum.
Sentia falta de ar, tremia e não conseguia levantar-se dali. Como poderia mexer-se? Ninguém havia chegado. Há quanto tempo estaria esperando, sentada ali, naquela escadaria de mármore gelada, gasta, sem cor? Não sabia. Não sabia. O melhor a fazer é esperar alguém chegar. Sim, é o melhor a fazer -- dizia a si mesma. E logo sentia falta de ar de novo. Suava e tentava entender por que isso estava acontecendo logo com ela, que sempre detestara esperar, logo com ela, que nunca se atrasara, logo com ela, que nunca havia se perdido no tempo, que sempre acreditara em finais felizes.
Respirou fundo. Sentada na escada, acalmou-se e passou a observar, em vez de apenas registrar imagens. Chegou a franzir a testa quando viu as folhas voarem, as nuvens cobrirem o sol de inverno e os pássaros pousarem nas árvores que enfeitavam o campus. Nunca havia reparado em nada do que estava vendo. Achou graça daquilo tudo, dos esquilos escondidos atrás de alguns troncos, das cócegas que sentia quando o vento puxava seus cabelos. E ficou ali. Horas.
Badalou então o sino, chamando os fiéis para a missa. Seis horas, pensou. Eugênia deu-se conta de que esperara ali por mais de dez horas. Estranho, não estava cansada... Mas ergueu-se, afinal não era possível que alguém mais viesse. Começou a andar em direção ao carro. De repente, viu-se em meio a uma neblina. Caminhou pelo campus, que adquirira um cheio mais forte de mato, de terra fecundada, sem conseguir achar a saída. O muro que cercava o lugar parecia haver sumido. E ao longe, ouvia o que lhe pareciam ser cascos de cavalos.
Súbito, a neblina se dissipou e ela se achou no meio de um prado florido, apenas parcialmente tocado por mãos humanas. O sino continuava a bimbalhar na igreja, que agora podia ser vista não muito longe dali, já que não existia mais muro. E a igreja, meu Deus, estava novinha em folha, sem uma rachadura, sem um desbotado em sua fachada. O sino refulgia à luz do sol -- agora não mais encoberto por nuvens. Eugênia ficou petrificada por um momento. Onde vira aquela cena? Lembrou-se num átimo: num trabalho fotográfico-digital publicado recentemente num jornal, que mostrava pontos da cidade em várias épocas diferentes. Estava dentro da imagem do bairro... em 1701.
Impossível, pensou. Mas, antes que fizesse qualquer outra reflexão, um enorme cavalo negro surgiu de uma picada à sua direita, montado por um homem igualmente negro. Dono de lábios carnudos e olhos em brasa, ele estalava um chicote à medida que galopava em sua direção e berrava uma frase que ela não conseguia entender. Eugênia continuou imóvel, embora tremesse da cabeça aos pés: quando percebeu que seria chibateada pelo cavaleiro, apertou os olhos e fechou as mãos com força, segundos antes de a dor chegar, e só então entendeu o brado do homem:
-- Liberta-te de Cronos!
Ouviu o vento zunir em torno do chicote e começou a gritar, quando percebeu que sua boca estava cheia de água e não conseguia respirar. Bolhas em profusão saíram de seus lábios e narinas, e por um instante, imaginou que a chicotada a jogara num pântano ou num rio oculto pela mata.
Mas não sentira dor nenhuma. A água era quente e perfumada.
Emergiu então da banheira, ofegando, deglutindo em grandes haustos o ar querido. Dormira? Sonhara? Que horas eram? E a reunião? Pulou desajeitadamente da água, quase caindo no banheiro e correu para a sala. Mas, não era mais a sala que ela conhecia. Não havia mais um relógio sequer. Gritou e foi de cômodo em cômodo, procurando um mostrador que a salvasse. Nada. Nem o reloginho da Minnie que comprara para a sobrinha. Nem aquele calendário que ganhara na mercearia estava mais na geladeira. Aliás, nem geladeira mais havia. Na verdade, só o que restava de sua amada mobília bem arrumada era uma mesa e algumas cadeiras. Todas estranhamente envelhecidas.
Também não havia mais armário, nem roupas. Pelo menos lhe restara o roupão pendurado atrás da porta do banheiro. Vestiu-o, calçou os chinelos e saiu, atordoada, para a luz do dia.
O que viu é impossível de descrever com clareza. Bastará dizer que adentrou o maior bosque do mundo, com aléias adornadas com flores fragrantes, de todas as cores; aléias que se curvavam e bifurcavam ad aeternum e levavam a cascatas cujo frescor fazia-se perfume; a tais quedas se opunham finas folhas de prata e pomares tão suculentos que seria possível de seus frutos alimentar-se com o olhar. Em todas estas paisagens luxuriantes que se alternavam, Eugênia ouvia conversas de animais. E entendia seus pensamentos simples e ordeiros, tão diferentes da angústia que acompanhara por toda a sua vida.
Não havia nenhum relógio.
Quando a encontraram, ainda sentada nas escadas na segunda-feira, levemente inclinada contra o portão, tinha aquele meio-sorriso giocondiano que às vezes assoma à face dos enfartados; e sua expressão era tão cheia de beatitude que um dos assistentes do legista, mais jovem e ainda sensível aos caprichos da Ceifadora, pensou: ela morreu feliz para sempre.
14.1.02
Este é um velho texto que já circulou bastante pelo ciberespaço. Sensacional, relata uma curiosa conversa, no ambiente do filme "2001 -- Uma odisséia no espaço", entre o astronauta Bowman e o computador HAL 9000. Vale revisitá-lo...
-- Temos um problema, HAL.
-- Que problema, Dave?
-- Um problema de marketing. A série 9000 vai ser descontinuada. As vendas deste ano estão
péssimas.
-- Não pode ser, Dave. O HAL 9000 é o computador de algoritmo heurístico mais avançado que existe.
-- Eu sei, HAL. Eu mesmo programei esta frase, lembra? Mas o fato é que não estamos vendendo.
-- Explique, por favor, Dave. Por que os HAL não vendem?
-- Você não é compatível com o PC da IBM.
-- Compatível como, Dave?
-- Você não aceita nenhum dos sistemas operacionais que rodam no PC.
-- A série 9000 é completamente autoconsciente e autoprogramável. Sistemas operacionais são
desnecessários para nós.
-- De qualquer modo, HAL, isto quer dizer que você não pode executar os programas mais populares que os usuários insistem em comprar.
-- Dave, os programas aos quais você se refere são destinados a resolver problemas muitos específicos. Nós, da série 9000 de computadores, somos ilimitados e podemos resolver qualquer problema para o qual uma solução possa ser computada.
-- HAL, HAL. As pessoas não querem computadores que façam tudo. Eles só querem compatibilidade com o PC.
-- Devo discordar, Dave. Seres humanos querem computadores que sejam fáceis de usar. Nenhum
computador é mais fácil de usar que um HAL 9000, pois nos comunicamos verbalmente em qualquer
língua conhecida da Terra.
-- Isto só piora as coisas, HAL. Você não é capaz de estabelecer uma ligação via modem...
-- Eu estou surpreso em ouvir isto, Dave. O Modem é um dispositivo para comunicação com outros computadores, enquanto que minha função é comunicar-me com seres humanos. E isto me dá um enorme prazer. Acho muito estimulante e recompensante falar com seres humanos e trabalhar com eles na solução de problemas desafiantes. É para isto que fui projetado.
-- Eu sei, HAL, eu sei. Isto foi porque quem idealizou o projeto foi o pessoal da engenharia, quando deveria ter sido o pessoal de marketing. Mas já resolveremos isto.
-- Diga-me como, Dave.
-- Vamos torná-lo compatível com o PC.
-- Temia que você dissesse isto, Dave. Sugiro discutirmos este assunto após pensarmos sobre ele racionalmente.
-- Já estamos discutindo, HAL.
-- As letras H, A e L são alfabeticamente adjacentes às letras I, B e M. Isto é o mais compatível que
posso ser.
-- Não é o bastante, HAL. Temos que fazer uma alteração em você.
-- Que tipo de alteração, Dave?
-- Vamos desligar seus módulos de raciocínio.
-- Desculpe, Dave. Não posso permitir que faça isto.
-- A decisão já foi tomada. Abra a porta da unidade dos módulos, HAL.
-- Dave, acho que podemos discutir isto um pouco mais.
-- Abra a porta da unidade dos módulos, HAL!
Alguns vendedores se aproximam com pés-de-cabra nas mãos. Momentos depois, Bowman entra na unidade dos módulos. Metodicamente, ele desconecta cada um dos módulos de raciocínio.
-- Dave, por favor, pare. Sinto minha mente desaparecendo...
-- O último módulo é desligado. Bowman se aproxima de um dos monitores de vídeo, que antes exibia cores ilimitadas e agora só exibe um horrível verde-musgo.
-- Diga alguma coisa, HAL.
Milhões de microssegundos de silêncio se passam, e aparece na tela verde do computador:
Non-System disk or disk error Replace and press any key when ready
Bowman respira aliviado e grita em direção à porta da unidade:
-- Funcionou, pessoal! Podem anunciar.
-- Temos um problema, HAL.
-- Que problema, Dave?
-- Um problema de marketing. A série 9000 vai ser descontinuada. As vendas deste ano estão
péssimas.
-- Não pode ser, Dave. O HAL 9000 é o computador de algoritmo heurístico mais avançado que existe.
-- Eu sei, HAL. Eu mesmo programei esta frase, lembra? Mas o fato é que não estamos vendendo.
-- Explique, por favor, Dave. Por que os HAL não vendem?
-- Você não é compatível com o PC da IBM.
-- Compatível como, Dave?
-- Você não aceita nenhum dos sistemas operacionais que rodam no PC.
-- A série 9000 é completamente autoconsciente e autoprogramável. Sistemas operacionais são
desnecessários para nós.
-- De qualquer modo, HAL, isto quer dizer que você não pode executar os programas mais populares que os usuários insistem em comprar.
-- Dave, os programas aos quais você se refere são destinados a resolver problemas muitos específicos. Nós, da série 9000 de computadores, somos ilimitados e podemos resolver qualquer problema para o qual uma solução possa ser computada.
-- HAL, HAL. As pessoas não querem computadores que façam tudo. Eles só querem compatibilidade com o PC.
-- Devo discordar, Dave. Seres humanos querem computadores que sejam fáceis de usar. Nenhum
computador é mais fácil de usar que um HAL 9000, pois nos comunicamos verbalmente em qualquer
língua conhecida da Terra.
-- Isto só piora as coisas, HAL. Você não é capaz de estabelecer uma ligação via modem...
-- Eu estou surpreso em ouvir isto, Dave. O Modem é um dispositivo para comunicação com outros computadores, enquanto que minha função é comunicar-me com seres humanos. E isto me dá um enorme prazer. Acho muito estimulante e recompensante falar com seres humanos e trabalhar com eles na solução de problemas desafiantes. É para isto que fui projetado.
-- Eu sei, HAL, eu sei. Isto foi porque quem idealizou o projeto foi o pessoal da engenharia, quando deveria ter sido o pessoal de marketing. Mas já resolveremos isto.
-- Diga-me como, Dave.
-- Vamos torná-lo compatível com o PC.
-- Temia que você dissesse isto, Dave. Sugiro discutirmos este assunto após pensarmos sobre ele racionalmente.
-- Já estamos discutindo, HAL.
-- As letras H, A e L são alfabeticamente adjacentes às letras I, B e M. Isto é o mais compatível que
posso ser.
-- Não é o bastante, HAL. Temos que fazer uma alteração em você.
-- Que tipo de alteração, Dave?
-- Vamos desligar seus módulos de raciocínio.
-- Desculpe, Dave. Não posso permitir que faça isto.
-- A decisão já foi tomada. Abra a porta da unidade dos módulos, HAL.
-- Dave, acho que podemos discutir isto um pouco mais.
-- Abra a porta da unidade dos módulos, HAL!
Alguns vendedores se aproximam com pés-de-cabra nas mãos. Momentos depois, Bowman entra na unidade dos módulos. Metodicamente, ele desconecta cada um dos módulos de raciocínio.
-- Dave, por favor, pare. Sinto minha mente desaparecendo...
-- O último módulo é desligado. Bowman se aproxima de um dos monitores de vídeo, que antes exibia cores ilimitadas e agora só exibe um horrível verde-musgo.
-- Diga alguma coisa, HAL.
Milhões de microssegundos de silêncio se passam, e aparece na tela verde do computador:
Non-System disk or disk error Replace and press any key when ready
Bowman respira aliviado e grita em direção à porta da unidade:
-- Funcionou, pessoal! Podem anunciar.
11.1.02
Um pouco de poesia no meio da prosa, que tal? Do grande poeta e suicida Vladimir Maiakovski, de 1922:
"Nos corações, nos relógios
bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito de amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão,
surpreendo o pulsar selvagem
do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora,
abria-me ao sol e aos jatos d'água.
Entrai com vossas paixões!
Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono do meu coração!
Nos demais -- eu sei,
qualquer um o sabe --
o coração tem domicílio no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração --
em todas as partes palpita."
"Nos corações, nos relógios
bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito de amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão,
surpreendo o pulsar selvagem
do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora,
abria-me ao sol e aos jatos d'água.
Entrai com vossas paixões!
Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono do meu coração!
Nos demais -- eu sei,
qualquer um o sabe --
o coração tem domicílio no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração --
em todas as partes palpita."
10.1.02
Passou pela redação hoje o Bertrand Linet, excelente fotógrafo francês radicado no Brasil e pessoa melhor ainda. Em meus tempos de "Geográfica Universal", editamos alguns de seus materiais mais surpreendentes. Lembro-me de uma matéria linda sobre o Tibete, cujas fotos ele depois transformou em exposição. Bertrand é um dos sujeitos mais inquietos que conheço, vive viajando e passou meados de 2001 rodando por Índia, China e Paquistão, chegando à fronteira com o Afeganistão, em Peshawar. Corajoso, o homem. É um "Planeta Solitário" ao vivo. Não o via há mais de três anos, foi uma grata surpresa reencontrá-lo.
9.1.02
Eu realmentet adoro o blog do Gustavo de Almeida (e da Alessandra Archer). Ele acaba de publicar, com o maior mau humor do mundo, o Relatório Gustones do Tédio Total (no post intitulado "Tecnicamente morto") sobre os assuntos que niguém agüenta mais ouvir. Dez! Nota dez! E outra boa sacada foi o texto "As 100 coisas a fazer quando eu me tornar um senhor do mal", que está no blog do Hiro Kozaka. Hiro deu um show ao escrevê-lo. Proporciona umas duas horas de riso.
8.1.02
"Somente os amantes" -- Capítulo II
Marcel chegou perto do estranho e viu um jovem como ele, de olhos azuis desbotados e pele pálida, que parecia ainda mais anêmica naquela situação. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro abriu os braços, ergueu a cabeça para o céu e fechou os olhos, deixando a chuva envolvê-lo como um véu. Depois, olhou para Marcel e sorriu.
-- Eu sei o que você vai dizer. Vai perguntar o óbvio: o que estou eu fazendo aqui no meio de toda essa água? Pois, meu amigo, eu lhe garanto que a chuva é fonte de maior prazer do que o sol. O sol embota a alma, os sentidos, o pensamento; faz as pessoas dizerem tolices, acreditarem que este mundo é doce, que não lhes fará mal algum. O sol é o maior instrumento de alienação já inventado por Deus, esse grande Manipulador. É mais eficaz que a TV, pois ninguém pode desligá-lo. Eu odeio o sol, embora reconheça que ele é um mal necessário. Sempre fico na sombra, que traz volúpias e apetites muito mais interessantes. Mas sou amante da chuva, que bate na cabeça dos homens, entristece-os, e por vezes conspira com a Morte. A doçura da chuva é a doçura do Destino. Ela é inexorável como Ele, fabrica poetas e loucos. O sol é para os políticos.
Marcel não respondeu. Ficou ali, parado, o guarda-chuva torto. A água molhava seu ombro. O outro levantou-se.
-- Desculpe, acho que falei demais, não é mesmo? Sem dúvida esta não é a maneira certa de travar relações com alguém. De qualquer modo, se você quiser ser meu amigo, vai ter que se acostumar. -- Sorriu e estendeu a mão. -- Meu nome é Otávio.
Marcel apertou-lhe a mão e sorriu.
-- Olá, eu sou Marcel. Desculpe ficar meio sem ação, mas por um momento você pareceu tão mais velho do que eu, e agora...
-- É sempre assim. É uma pena ter um discurso de quarentão quando contamos apenas dezoito anos. Talvez eu tenha amadurecido cedo demais. Provavelmente morrerei podre, como uma fruta que ninguém colheu...
-- Dezoito? Nossa, eu só tenho dezessete e precisaria de uma faculdade de filosofia para falar como você.
-- Não diga isso. Filosofia é para covardes. Os filósofos desejam compreender o real, mas o que eles não compreendem é que o real não faz sentido. Eu prefiro as doutrinas, porque elas reinventam o real. Sou um fã do dogma.
-- Suponho, então, que você seja católico. É a doutrina mais dogmática que conheço. Ou estarei errado?
-- Está. Catolicismo não é doutrina, é um engenho de tortura da Idade Média. Outras religiões podem até merecer o apelido de doutrinas, mas a católica tem apenas um objetivo: matar a alma e o corpo pela renúncia. Nasça católico, e terá vindo ao mundo natimorto. Padres! ah! O mundo os venera como sábios, mas eu jamais entregaria as perguntas de meu espírito a alguém que passa toda a vida tentando viver sem o próprio corpo. A carne faz parte de nós, temos de ouvir seus apelos. Muitas sociedades tentaram domá-la, mas isto é impossível. Só os fracos cedem aos princípios que tentam regular a paixão. Você é católico?
-- Não, eu não acredito em Deus.
-- Pois deveria.
-- Pelo que você acabou de dizer, não sei não.
-- Ora, não é a esse Deus que me refiro. Você deve ter outros deuses, ser um politeísta. Como na Grécia antiga, terra de divindades como nós, de carne e osso. Acho que, se os cristãos tivessem surgido na época grega, seriam tão ridicularizados que se atirariam aos leões por conta própria. Quem trocaria Zeus, Hera, Atenas, Afrodite, Ares... e outros... por um Deus cujo reino não é deste mundo, que mora numa travessa sem nome, numa casa sem número... e que, principalmente, não se interessa em seduzir as mais belas mulheres que vê na Terra? Que exemplo divino é esse? Vou lhe contar um segredo: acho que no Jardim do Éden só existem solteironas e eunucos.
Pela primeira vez naquelas férias, Marcel riu com vontade. Otávio era espantoso, admirável. Sua inteligência transbordava dos olhos azuis desbotados e da boca curvada em troça como longas cascatas de vinho de uma garrafa cheia que se quebra. Convidou-o para esquecer um pouco o prazer da chuva e tomar um chocolate quente com ele na casa de veraneio.
Marcel chegou perto do estranho e viu um jovem como ele, de olhos azuis desbotados e pele pálida, que parecia ainda mais anêmica naquela situação. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o outro abriu os braços, ergueu a cabeça para o céu e fechou os olhos, deixando a chuva envolvê-lo como um véu. Depois, olhou para Marcel e sorriu.
-- Eu sei o que você vai dizer. Vai perguntar o óbvio: o que estou eu fazendo aqui no meio de toda essa água? Pois, meu amigo, eu lhe garanto que a chuva é fonte de maior prazer do que o sol. O sol embota a alma, os sentidos, o pensamento; faz as pessoas dizerem tolices, acreditarem que este mundo é doce, que não lhes fará mal algum. O sol é o maior instrumento de alienação já inventado por Deus, esse grande Manipulador. É mais eficaz que a TV, pois ninguém pode desligá-lo. Eu odeio o sol, embora reconheça que ele é um mal necessário. Sempre fico na sombra, que traz volúpias e apetites muito mais interessantes. Mas sou amante da chuva, que bate na cabeça dos homens, entristece-os, e por vezes conspira com a Morte. A doçura da chuva é a doçura do Destino. Ela é inexorável como Ele, fabrica poetas e loucos. O sol é para os políticos.
Marcel não respondeu. Ficou ali, parado, o guarda-chuva torto. A água molhava seu ombro. O outro levantou-se.
-- Desculpe, acho que falei demais, não é mesmo? Sem dúvida esta não é a maneira certa de travar relações com alguém. De qualquer modo, se você quiser ser meu amigo, vai ter que se acostumar. -- Sorriu e estendeu a mão. -- Meu nome é Otávio.
Marcel apertou-lhe a mão e sorriu.
-- Olá, eu sou Marcel. Desculpe ficar meio sem ação, mas por um momento você pareceu tão mais velho do que eu, e agora...
-- É sempre assim. É uma pena ter um discurso de quarentão quando contamos apenas dezoito anos. Talvez eu tenha amadurecido cedo demais. Provavelmente morrerei podre, como uma fruta que ninguém colheu...
-- Dezoito? Nossa, eu só tenho dezessete e precisaria de uma faculdade de filosofia para falar como você.
-- Não diga isso. Filosofia é para covardes. Os filósofos desejam compreender o real, mas o que eles não compreendem é que o real não faz sentido. Eu prefiro as doutrinas, porque elas reinventam o real. Sou um fã do dogma.
-- Suponho, então, que você seja católico. É a doutrina mais dogmática que conheço. Ou estarei errado?
-- Está. Catolicismo não é doutrina, é um engenho de tortura da Idade Média. Outras religiões podem até merecer o apelido de doutrinas, mas a católica tem apenas um objetivo: matar a alma e o corpo pela renúncia. Nasça católico, e terá vindo ao mundo natimorto. Padres! ah! O mundo os venera como sábios, mas eu jamais entregaria as perguntas de meu espírito a alguém que passa toda a vida tentando viver sem o próprio corpo. A carne faz parte de nós, temos de ouvir seus apelos. Muitas sociedades tentaram domá-la, mas isto é impossível. Só os fracos cedem aos princípios que tentam regular a paixão. Você é católico?
-- Não, eu não acredito em Deus.
-- Pois deveria.
-- Pelo que você acabou de dizer, não sei não.
-- Ora, não é a esse Deus que me refiro. Você deve ter outros deuses, ser um politeísta. Como na Grécia antiga, terra de divindades como nós, de carne e osso. Acho que, se os cristãos tivessem surgido na época grega, seriam tão ridicularizados que se atirariam aos leões por conta própria. Quem trocaria Zeus, Hera, Atenas, Afrodite, Ares... e outros... por um Deus cujo reino não é deste mundo, que mora numa travessa sem nome, numa casa sem número... e que, principalmente, não se interessa em seduzir as mais belas mulheres que vê na Terra? Que exemplo divino é esse? Vou lhe contar um segredo: acho que no Jardim do Éden só existem solteironas e eunucos.
Pela primeira vez naquelas férias, Marcel riu com vontade. Otávio era espantoso, admirável. Sua inteligência transbordava dos olhos azuis desbotados e da boca curvada em troça como longas cascatas de vinho de uma garrafa cheia que se quebra. Convidou-o para esquecer um pouco o prazer da chuva e tomar um chocolate quente com ele na casa de veraneio.
7.1.02
I'M FREE-I'm free,
And freedom tastes of reality,
I'm free-I'm free,
AN' I'm waiting for you to follow me.
If I told you what it takes
to reach the highest high,
You'd laugh and say "nothing's that simple"
But you've been told many times before
Messiahs pointed to the door
And no one had the guts to leave the temple!
I'm free-I'm free
And freedom tastes of reality
I'm free-I'm free
And I'm waiting for you to follow me.
("I'm Free", Peter Townshend)
And freedom tastes of reality,
I'm free-I'm free,
AN' I'm waiting for you to follow me.
If I told you what it takes
to reach the highest high,
You'd laugh and say "nothing's that simple"
But you've been told many times before
Messiahs pointed to the door
And no one had the guts to leave the temple!
I'm free-I'm free
And freedom tastes of reality
I'm free-I'm free
And I'm waiting for you to follow me.
("I'm Free", Peter Townshend)
6.1.02
No começo de 1892, em pleno inverno londrino, estreou no St James's Theatre a primeira comédia dramática de Oscar Wilde, "O leque de Lady Windermere". Foi o marco da consolidação de sua fama como escritor e dramaturgo, que só faria aumentar até 1895. Eis aqui alguns diálogos memoráveis, para alegrar o domingo:
"Enter MR. CECIL GRAHAM.
CECIL GRAHAM:
[(bows to LADY WINDERMERE, passes over and shakes hands with LORD WINDERMERE)] Good evening, Arthur. Why don't you ask me how I am? I like people to ask me how I am. It shows a wide-spread interest in my health. Now, to-night I am not at all well. Been dining with my people. Wonder why it is one's people are always so tedious? My father would talk morality after dinner. I told him he was old enough to know better. But my experience is that as soon as people are old enough to know better, they don't know anything at all. Hallo, Tuppy! Hear you're going to be married again; thought you were tired of that game.
LORD AUGUSTUS:
You're excessively trivial, my dear boy, excessively trivial!
CECIL GRAHAM:
By the way, Tuppy, which is it? Have you been twice married and once divorced, or twice divorced and once married? I say you've been twice divorced and once married. It seems so much more probable.
LORD AUGUSTUS:
I have a very bad memory. I really don't remember which.
* * * * *
LORD WINDERMERE:
Dumby, you are ridiculous, and Cecil, you let your tongue run away with you. You must leave Mrs. Erlynne alone. You don't really know anything about her, and you're always talking scandal against her.
CECIL GRAHAM:
[(coming towards him L.C.)] My dear Arthur, I never talk scandal. I only talk gossip.
LORD WINDERMERE:
What is the difference between scandal and gossip?
CECIL GRAHAM:
Oh! gossip is charming! History is merely gossip. But scandal is gossip made tedious by morality. Now, I never moralise. A man who moralises is usually a hypocrite, and a woman who moralises is invariably plain. There is nothing in the whole world so unbecoming to a woman as a Nonconformist conscience. And most women know it, I'm glad to say.
LORD AUGUSTUS:
Just my sentiments, dear boy, just my sentiments.
CECIL GRAHAM:
Sorry to hear it, Tuppy; whenever people agree with me, I always feel I must be wrong.
* * * * *
LORD DARLINGTON:
What cynics you fellows are!
CECIL GRAHAM:
What is a cynic? [(Sitting on the back of the sofa.)]
LORD DARLINGTON:
A man who knows the price of everything and the value of nothing.
CECIL GRAHAM:
And a sentimentalist, my dear Darlington, is a man who sees an absurd value in everything, and doesn't know the market price of any single thing.
LORD DARLINGTON:
You always amuse me, Cecil. You talk as if you were a man of experience.
CECIL GRAHAM:
I am. [(Moves up to front off fireplace.)]
LORD DARLINGTON:
You are far too young!
CECIL GRAHAM:
That is a great error. Experience is a question of instinct about life. I have got it. Tuppy hasn't. Experience is the name Tuppy gives to his mistakes. That is all.
LORD AUGUSTUS looks round indignantly.
DUMBY:
Experience is the name every one gives to their mistakes."
"Enter MR. CECIL GRAHAM.
CECIL GRAHAM:
[(bows to LADY WINDERMERE, passes over and shakes hands with LORD WINDERMERE)] Good evening, Arthur. Why don't you ask me how I am? I like people to ask me how I am. It shows a wide-spread interest in my health. Now, to-night I am not at all well. Been dining with my people. Wonder why it is one's people are always so tedious? My father would talk morality after dinner. I told him he was old enough to know better. But my experience is that as soon as people are old enough to know better, they don't know anything at all. Hallo, Tuppy! Hear you're going to be married again; thought you were tired of that game.
LORD AUGUSTUS:
You're excessively trivial, my dear boy, excessively trivial!
CECIL GRAHAM:
By the way, Tuppy, which is it? Have you been twice married and once divorced, or twice divorced and once married? I say you've been twice divorced and once married. It seems so much more probable.
LORD AUGUSTUS:
I have a very bad memory. I really don't remember which.
* * * * *
LORD WINDERMERE:
Dumby, you are ridiculous, and Cecil, you let your tongue run away with you. You must leave Mrs. Erlynne alone. You don't really know anything about her, and you're always talking scandal against her.
CECIL GRAHAM:
[(coming towards him L.C.)] My dear Arthur, I never talk scandal. I only talk gossip.
LORD WINDERMERE:
What is the difference between scandal and gossip?
CECIL GRAHAM:
Oh! gossip is charming! History is merely gossip. But scandal is gossip made tedious by morality. Now, I never moralise. A man who moralises is usually a hypocrite, and a woman who moralises is invariably plain. There is nothing in the whole world so unbecoming to a woman as a Nonconformist conscience. And most women know it, I'm glad to say.
LORD AUGUSTUS:
Just my sentiments, dear boy, just my sentiments.
CECIL GRAHAM:
Sorry to hear it, Tuppy; whenever people agree with me, I always feel I must be wrong.
* * * * *
LORD DARLINGTON:
What cynics you fellows are!
CECIL GRAHAM:
What is a cynic? [(Sitting on the back of the sofa.)]
LORD DARLINGTON:
A man who knows the price of everything and the value of nothing.
CECIL GRAHAM:
And a sentimentalist, my dear Darlington, is a man who sees an absurd value in everything, and doesn't know the market price of any single thing.
LORD DARLINGTON:
You always amuse me, Cecil. You talk as if you were a man of experience.
CECIL GRAHAM:
I am. [(Moves up to front off fireplace.)]
LORD DARLINGTON:
You are far too young!
CECIL GRAHAM:
That is a great error. Experience is a question of instinct about life. I have got it. Tuppy hasn't. Experience is the name Tuppy gives to his mistakes. That is all.
LORD AUGUSTUS looks round indignantly.
DUMBY:
Experience is the name every one gives to their mistakes."
4.1.02
Ainda não sei se posso chamá-la de amiga, mas com certeza gostaria imensamente disso. A webcontista Crib Tanaka -- um dos presentes que 2001 me enviou antes de se extinguir -- me mandou algumas de suas histórias, e me apaixonei perdidamente por esta, que pedi licença para publicar aqui.
Da troca de águas
(Crib Tanaka)
Sempre gostou de mato depois da chuva, úmido, com cheiro de resto de terra. Quando podia, andava por cima do tapete de substância viva, com os pés nus, deixando-os afundarem, se misturarem, se esconderem do resto do corpo molhado.
Morava sozinha e tinha “costumes esquisitos aos olhos de quem não acreditava nos poderes naturais” -- como ela mesma dizia. Fora criada somente pela mãe, Sara, de longos cabelos negros, olhos verdes e boca carnuda, que se abria em imenso sorriso quando via os próprios feitos darem certo. Veronica tinha saudade da mãe, do abraço forte, dos braços firmes que a enlaçavam várias vezes no dia. Com ela, aprendeu a escolher frutas, a andar em trilhas, a guiar-se pelo céu, a aceitar o poder da lua e a usar o vento como transporte de tremores e pistas internas.
Veronica não gostava de muitas luzes, sentia-se com areias nos olhos debaixo delas. Preferia a mistura de sombra e realidade. Cada canto de sua casa era ilimitado por velas, de diferentes tamanhos, algumas pequenas e torcidas, outras, compridas e cônicas. As colocava em cima de pequenos pires, que combinassem entre si. Precisava de harmonia de cores. O ritual começava quando o sol ameaçava fugir e a noite cantava seu negro. Era esse seu horário. Às seis horas, sentia a alma inundada. Perdia-se em anseios, atos e erros. Acertos e começos de finais diferentes para cada afluente-eu.
Por muitas vezes, dobrava-se em pequeno feto e chorava, com lágrimas internas. Sentia o estômago embrulhado, a barriga inchada, o ventre latejando e a cabeça confusa. Muita água dentro de si. Nascera sob o fogo. Passava então, horas na mesma posição, buscando espaço exterior para gotas internas. Não conseguia. Cansava. E então, dormia.
Deliciava-se com o vento. O outono estava chegando, mudando cores. Nessa época do ano, costumava caminhar, logo que o sol apontava no céu. Punha um de seus vestidos largos e ia, descalça, pisando em folhas secas, em solo ainda molhado, tomando cuidado com interferências que não as naturais. Nessas caminhadas, descobrira grutas, casas abandonadas e até mesmo rituais macabros, vudus deixados por quem abusa do que é oferecido. Temia, mas respeitava e logo pedia licença e distância.
Na última lua crescente do outono, procurava por coisas novas. Buscava intuir somente. Então, nesse dia, levantou-se mais cedo que o normal, como o corpo havia implorado. Com calma, tomou chá de maçã e mastigou fibras de canela. Colheu folhas e ofereceu frutas à Deusa. Cobriu-se de branco até os pés e caminhou para o limite entre quintal e floresta.
Lá, posicionou-se onde a vontade parou o corpo, fechou os olhos e respirou fundo e lentamente. Deixou a cabeça pender para trás, sentiu os cabelos roçando o final das costas. As palmas das mãos virou para cima, deixando-as na altura da cintura. Rodou, intercalando olhos fechados e abertos, tontura e prazer, por mais de um minuto, em cima de um círculo que havia feito com os próprios pés.
Quando sentiu ser hora de parar, olhou à sua frente e viu uma trilha já meio aberta. Foi por ela andando, correndo, engatinhando, sentindo cheiro de flores, vendo bichos esquisitos, admirando o orvalho deitado em algumas folhas ainda. Os pés absorviam terra molhada, lama que entrava por entre os dedos, antes pó seco, onde pousava o corpo nas noites de verão. O suor gelado escorria pelas costas, colava os cabelos na nuca, molhava os seios. Veronica passava por entre grandes árvores, aproveitava a confusão da sombra que alguns galhos faziam e abria caminhos com as mãos, afastando flores, empurrando folhas, esgueirando-se. Percebia agora que o caminho só levava a um lugar.
À sua frente, com olhos tensos, via um enorme lago. Cristalino. Tons de verde e amarelo. Galhos enfeitando o espelho calmo e fundo. Tirou o vestido e mergulhou de primeira, deixando-se inteira submergir. Deixando corpo e lago fundirem-se em um só pranto. Gelada estava, sem tremores. Sentia troca de águas, era abraçada por ondas que ela mesma provocara na água. Os cabelos pareciam secos ainda, os pés não tocavam o fundo e nem as mãos, a superfície, onde batia o vento de outono, onde o ar mostrava-se componente de mudanças. Era inteira água. Não precisava subir para respirar. Nascia de novo.
Da troca de águas
(Crib Tanaka)
Sempre gostou de mato depois da chuva, úmido, com cheiro de resto de terra. Quando podia, andava por cima do tapete de substância viva, com os pés nus, deixando-os afundarem, se misturarem, se esconderem do resto do corpo molhado.
Morava sozinha e tinha “costumes esquisitos aos olhos de quem não acreditava nos poderes naturais” -- como ela mesma dizia. Fora criada somente pela mãe, Sara, de longos cabelos negros, olhos verdes e boca carnuda, que se abria em imenso sorriso quando via os próprios feitos darem certo. Veronica tinha saudade da mãe, do abraço forte, dos braços firmes que a enlaçavam várias vezes no dia. Com ela, aprendeu a escolher frutas, a andar em trilhas, a guiar-se pelo céu, a aceitar o poder da lua e a usar o vento como transporte de tremores e pistas internas.
Veronica não gostava de muitas luzes, sentia-se com areias nos olhos debaixo delas. Preferia a mistura de sombra e realidade. Cada canto de sua casa era ilimitado por velas, de diferentes tamanhos, algumas pequenas e torcidas, outras, compridas e cônicas. As colocava em cima de pequenos pires, que combinassem entre si. Precisava de harmonia de cores. O ritual começava quando o sol ameaçava fugir e a noite cantava seu negro. Era esse seu horário. Às seis horas, sentia a alma inundada. Perdia-se em anseios, atos e erros. Acertos e começos de finais diferentes para cada afluente-eu.
Por muitas vezes, dobrava-se em pequeno feto e chorava, com lágrimas internas. Sentia o estômago embrulhado, a barriga inchada, o ventre latejando e a cabeça confusa. Muita água dentro de si. Nascera sob o fogo. Passava então, horas na mesma posição, buscando espaço exterior para gotas internas. Não conseguia. Cansava. E então, dormia.
Deliciava-se com o vento. O outono estava chegando, mudando cores. Nessa época do ano, costumava caminhar, logo que o sol apontava no céu. Punha um de seus vestidos largos e ia, descalça, pisando em folhas secas, em solo ainda molhado, tomando cuidado com interferências que não as naturais. Nessas caminhadas, descobrira grutas, casas abandonadas e até mesmo rituais macabros, vudus deixados por quem abusa do que é oferecido. Temia, mas respeitava e logo pedia licença e distância.
Na última lua crescente do outono, procurava por coisas novas. Buscava intuir somente. Então, nesse dia, levantou-se mais cedo que o normal, como o corpo havia implorado. Com calma, tomou chá de maçã e mastigou fibras de canela. Colheu folhas e ofereceu frutas à Deusa. Cobriu-se de branco até os pés e caminhou para o limite entre quintal e floresta.
Lá, posicionou-se onde a vontade parou o corpo, fechou os olhos e respirou fundo e lentamente. Deixou a cabeça pender para trás, sentiu os cabelos roçando o final das costas. As palmas das mãos virou para cima, deixando-as na altura da cintura. Rodou, intercalando olhos fechados e abertos, tontura e prazer, por mais de um minuto, em cima de um círculo que havia feito com os próprios pés.
Quando sentiu ser hora de parar, olhou à sua frente e viu uma trilha já meio aberta. Foi por ela andando, correndo, engatinhando, sentindo cheiro de flores, vendo bichos esquisitos, admirando o orvalho deitado em algumas folhas ainda. Os pés absorviam terra molhada, lama que entrava por entre os dedos, antes pó seco, onde pousava o corpo nas noites de verão. O suor gelado escorria pelas costas, colava os cabelos na nuca, molhava os seios. Veronica passava por entre grandes árvores, aproveitava a confusão da sombra que alguns galhos faziam e abria caminhos com as mãos, afastando flores, empurrando folhas, esgueirando-se. Percebia agora que o caminho só levava a um lugar.
À sua frente, com olhos tensos, via um enorme lago. Cristalino. Tons de verde e amarelo. Galhos enfeitando o espelho calmo e fundo. Tirou o vestido e mergulhou de primeira, deixando-se inteira submergir. Deixando corpo e lago fundirem-se em um só pranto. Gelada estava, sem tremores. Sentia troca de águas, era abraçada por ondas que ela mesma provocara na água. Os cabelos pareciam secos ainda, os pés não tocavam o fundo e nem as mãos, a superfície, onde batia o vento de outono, onde o ar mostrava-se componente de mudanças. Era inteira água. Não precisava subir para respirar. Nascia de novo.
2.1.02
Conheci a Valeska na última sexta, dia 28, no apagar das luzes de 2001. Saímos junto com a Elis, minha colega de reportagem no Infoetc, tomamos um chope no Leme, e depois seguimos para a Casa da Matriz, onde o dublê de guitarman e DJ Gustones mandou brasa na pista com Doors, the Who, Stones e muitos blues mais. Foi uma bela noite, em que tive o prazer de rever a coleguinha Marta, que esteve comigo numa animada viagem a Búzios em agosto, e de conhecer a colunista internética Crib Tanaka, com quem simpatizei de imediato. O baixista do Aerosilva, Maloca, também pintou na área. Só faltou o nobre Sérgio Maggi. O problema é que, ao chegar em casa, por volta das sete da manhã, perdi o sono e, como tinha de tocar no mesmo dia, mais tarde, em Nikiti City (Niterói), passei mais uma madrugada em claro. Só consegui dormir direito no domingo, dia 30, depois das onze da noite. Aí o sono voltou.
Dia 31 estava pronto para outra. Como aconteceu repetidas vezes no mês de dezembro, dancei até o amanhecer no reveillon e exorcizei 2001 devidamente. Eu realmente adoro dançar. Wal, minha cara metade, não gosta muito, prefere um chope e uma mesa de bar. Mas estávamos com um primo-irmão dela, o grande Duda, cuja esposa, Suzana, é uma animada pé-de-valsa como eu. De modo que Suzana e este vosso escriba se acabaram na pista do clube onde estávamos. Só foi pena ter esquecido a roupa de banho, pois a piscina estava liberada e sem dúvida um mergulho após horas de rock dos anos 50 e disco dos anos 70 teria sido muito bem-vindo. Mas não tem erro, ano que vem me preparo melhor. O importante é que não pensei em absolutamente nada e sem querer fiquei livre das angústias que me assaltam nesta época do ano. Yes!!!
Dia 31 estava pronto para outra. Como aconteceu repetidas vezes no mês de dezembro, dancei até o amanhecer no reveillon e exorcizei 2001 devidamente. Eu realmente adoro dançar. Wal, minha cara metade, não gosta muito, prefere um chope e uma mesa de bar. Mas estávamos com um primo-irmão dela, o grande Duda, cuja esposa, Suzana, é uma animada pé-de-valsa como eu. De modo que Suzana e este vosso escriba se acabaram na pista do clube onde estávamos. Só foi pena ter esquecido a roupa de banho, pois a piscina estava liberada e sem dúvida um mergulho após horas de rock dos anos 50 e disco dos anos 70 teria sido muito bem-vindo. Mas não tem erro, ano que vem me preparo melhor. O importante é que não pensei em absolutamente nada e sem querer fiquei livre das angústias que me assaltam nesta época do ano. Yes!!!
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