10.5.02

Minicontos do desconforto -- 18

Jurou que era a última vez que ouvia aquele disco. A capa já estava até meio comida pelas traças, o vinil com alguns tec-tecs que ele conhecia de cor no meio das músicas. Deitou a agulha sobre a bolacha e jogou-se no sofá. O show começou, pegou embalo e logo ele batucava e cantarolava junto com a banda. Abriu a garrafa de conhaque e bebeu pelo gargalo. Chovia.

Quando pôs para tocar o último lado do segundo Lp, quase chorou. Não ia mais ouvir as piadas do cantor entre as músicas, nem aquele solo improvisado do guitarrista com uma canção de ninar no meio. Mas era preciso. O disco ia acabar furando.

Chegou o momento. "If you wanna a little bit of rocknroll, shout it out loud", gritou o vocalista. Era a senha para o encore final. A música rolou uma vez mais. Fim. O volume dos aplausos foi diminuindo. E... de repente aumentou de novo! Houve um segundo bis. E um terceiro. Nada disso estava no disco. Até agora.

Ele se sentou no sofá, olhou para a vitrola. Que porra era aquela? A agulha flutuava acima do vinil. A banda parecia estar ali, a turba ensandecida vociferando à sua volta. Deve ser o conhaque, pensou. De repente, do nada eles estavam ali. Um show na sala do conjugado.

Ele se juntou à banda até o décimo-quinto bis, quando por fim diluiu-se no ar e foi sugado pelo disco negro e reluzente. E viveu ali, na ponta da agulha, o resto de seus dias, no meio daquela multidão, assistindo àquele show até o dia em que seu filho, transido de saudade, quebrou a bolacha sem jamais saber que estava mandando seu pai para o limbo.

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