Olhaí o conto prometido...
A mudança
Crib Tanaka e André Machado
Para ela era difícil. Tudo. Tudo era difícil. Impossível explicar como fazia para tanto sentir e pouco esquecer. Nunca aprendia através de regras. Difícil demais seguir uma linha de pensamento imposta por um e seguida por todos. Odiava não contestar, só aceitar, abaixar a cabeça para o que quer que fosse. Precisava ser convencida de que estava errada. Do contrário, sim, estava certa. Discussão sem argumentos fundados e sem intuições à mostra não era com ela.
Um dia decidiu morar consigo mesma. Arrumou malas e fechou o apartamento onde sobrevivia. Não queria vizinhos, nada de elevador. Nada coletivo. Deixou todos os processos empilhados, junto aos ternos espalhados e aos vinhos caros abertos.
Com o dinheiro que herdara da avó, comprou uma pequena casa, branca, feia e longe de tudo, mas sua. Mudou-se e não avisou a ninguém. Era difícil se despedir. Não sabia nessas horas equilibrar sentimentos e palavras e terminava muda, vendo uma parte dela indo embora, sem ao menos reivindicar afagos.
A casa logo se tornou difícil de organizar. Gostava de coisas diferentes que não combinavam entre si. Entrava em lojas e gastava com objetos indianos, coloridos; com azulejos portugueses, pretos e brancos; com colchas de patchwork; com amuletos tailandeses; e com cocares indígenas. Chegava em casa abarrotada de sacolas. Olhava à sua volta e sentia um misto de desespero com felicidade. Onde pôr todas aquelas coisas que tornavam seus cantos vivos? Terminava dispondo-as, com dificuldade, em buracos ainda não preenchidos, até que tudo se harmonizava.
Os canais via satélite mal pegavam. Fora morar em lugar de difícil acesso, sabia disso. A falta de chiados televisivos -- um som que a embalara durante muitos anos -- era compensada pelo silêncio de mato. Silêncio que descobria aconchegante, de encontros furtivos de folhas, de águas beijando e excitando o solo nos dias de temporal, de setas vermelhas refletidas em cortinas prateadas.
Alterou-se várias vezes, experimentando caules e frutos. Andou descalça em pedras de cheiro de limão e correu equilibrando espontaneidade em braços desritmados, pernas cansadas e pés leves. Nadou em águas cortantes e descansou em verdes fundos de pedras.
Cozinhou, andou, enjoou, correu, desmaiou, sangrou, riu, suou, amargou, queimou, reagiu.
Sentia. Estava em contato -- em primeiro grau. Estava próxima. Sentia o que não via. Sentia sem dificuldade alguma. Sem querer saber o porquê, nem quando.
Lembrou-se dos processos em cima da mesa e do vinho ainda pela metade. Trincou os dentes. Era hora de voltar para casa.
Quando abriram a porta, não a reconheceram a princípio. Um aroma de mato recém-batizado pela chuva emanava de seus cabelos; os olhos se moviam mais rápido que o usual; e deixara as malas pelo caminho, recolhendo em seu lugar folhas e ramos esvoaçantes que, silenciosamente, a haviam convidado para dançar.
O espanto aumentou quando ela se sentou à mesa do escritório, cheirou o vinho e o pôs de lado, pedindo um chá de ervas picantes. Com um ar alheado, começou a folhear os processos, mas as lágrimas logo surgiram com a lembrança de que todo o papelório saíra de uma floresta altiva e generosa. Agora servia para abrigar aquele monte de picuinhas humanas sem sentido.
Irritada, ateou fogo ao processo de um vizinho que reclamava das passadas pesadas do outro no andar de cima, à noite. O fogo lhe deu tesão: incendiou outro e mais outro, até que o escritório começou a arder e a família, a gritar. Sua fúria perdeu qualquer entrave; ela voltara, mas mudara. Não era mais questão de ser convencida de nada: tornou-se, no momento exato que arrebentou os grilhões da Razão para ingressar nas teias da Insânia, uma espécie de xamã elemental, dançando e cantando numa homenagem profunda à terra, celebração que o mundo jamais veria (a não ser umas duas mil e quatrocentas encarnações depois).
Queimou os processos, a família, o apartamento, o cachorro que dormia desavisado no tapete. Banhou-se nas chamas recitando sua canção telúrica. O bairro nunca mais esqueceu o incêndio do edifício Summers. Quando encontraram seus restos calcinados, não entenderam porque eles estavam todos decorados simetricamente com folhas e flores de vivos coloridos.
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