Da série "recebi por e-mail e ri um bocado" (Atenção: existem imprecisões cronológicas na lista, mas mesmo assim o clima das músicas condiz com a época)
A EVOLUÇÃO DAS CANÇÕES PARA SEDUZIR A AMADA
Década de 10:
O rapaz de terno, colete e cravo na lapela, embaixo da janela dela, canta:
"Tão longe, de mim distante, onde irá, onde irá teu pensamento?
Quisera saber agora se esqueceste, se esqueceste o juramento.
Sabe se és constante, se ainda é meu teu pensamento
e minh'alma toda de fora, da saudade, agro tormento!"
Década de 20:
Ele, de terno branco e chapéu de palha, embaixo do sobrado onde ela mora, canta:
"Ó linda imagem de mulher que me seduz!
Ah, se eu pudesse tu estarias num altar!
És a rainha dos meus sonhos,
és a luz, és malandrinha,
não precisas trabalhar."
Década de 30:
Ele, de terno cinza e chapéu panamá, em frente à vila onde ela mora, canta:
"Tu és, divina e graciosa, estátua majestosa!
Do amor por Deus esculturada.
És formada com o ardor
da alma da mais linda flor,
de mais ativo olor,
que na vida és preferida pelo beija-flor...."
Década de 40:
Ele ajeita seu relógio Pateck Philip na algibeira, escreve para a Rádio Nacional e manda oferecer a ela uma linda música:
"A deusa da minha rua,
tem os olhos onde a lua,
costuma se embriagar.
Nos seus olhos eu suponho,
que o sol num dourado sonho,
vai claridade buscar"
Década de 50/60:
Ele pede ao cantor da boate que ofereça a ela a interpretação de uma bela bossa:
"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça.
É ela a menina que vem e que passa,
no doce balanço a caminho do mar.
Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema.
O teu balançado é mais que um poema.
É a coisa mais linda que eu já vi passar."
Década de 60:
Ele aparece na casa dela com um compacto simples embaixo do braço, ajeita a calça Lee e coloca na vitrola algo papo-firme:
"Nem mesmo o céu, nem as estrelas,
nem mesmo o mar e o infinito
nao é maior que o meu amor,
nem mais bonito.
Me desespero a procurar
alguma forma de lhe falar
como é grande o meu amor por você...."
Década de 70:
Ele chega em seu fusca, com tala larga, sacode o cabelão, abre a porta prá mina entrar e bota uma melô jóia no toca-fitas:
"Foi assim, como ver o mar,
a primeira vez que os meus olhos
se viram no teu olhar....
Quando eu mergulhei no azul do mar,
sabia que era amor
e vinha pra ficar.... "
Década de 80:
Ele telefona pra ela e deixa rolar um:
"Fonte de mel, nos olhos de gueixa,
Kabuki, máscara.
Choque entre o azul e o cacho de acácias,
luz das acácias, você é mãe do sol.
(...) Linda, mais que demais.."
Década de 90:
Ele liga pra ela e deixa gravada uma música na secretária eletrônica:
"Bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz.
Mas já não há caminhos pra voltar.
E o que é que a vida fez da nossa vida?
O que é que a gente não faz por amor?"
Em 2001:
Ele captura na internet um batidão legal e manda pra ela, por e-mail:
"Tchutchuca! Vem aqui com o teu Tigrão.
Vou te jogar na cama e te dar muita pressão!
Eu vou passar cerol na mão, vou sim, vou sim!
Eu vou te cortar na mão! Vou sim, vou sim!
Vou aparar pela rabiola! Vou sim, vou sim!"
Em 2002:
Ele pára o chevetinho 81, rebaixado, e no mais alto volume solta o som:
"Abre as pernas, faz beicinho,
vou morder o seu grelinho....
Vai Serginho, vai Serginho...."
"Vem minina num si ispanta,
vô gozá na tua garganta...."
O que virá depois????
28.3.02
27.3.02
(Longo) momento rock -- 10
Trechos de recentíssima entrevista do Gene Simmons (Kiss) ao site "The Onion"...
Sobre os roqueiros que acham que o rock é arte:
"None of these guys ever took any music-theory lessons or anything, and that includes me. None of us ever took the time to go to music school, and we can't, to this day, read or write musical notation. We never took music lessons to learn about that. So the deluded notion that we're making anything other than sugar is nuts. I'm not saying that sugar doesn't taste good, but it burns fast. It's not meant to last. This is not classical music. It's modern, popular music, and for somebody who isn't really qualified to call himself a musician to claim he's making art is, at the very least, delusional."
Sobre os montes de merchandising da banda:
"The more the better. Immediately, I saw that we were a rock 'n' roll brand, not just a rock 'n' roll band. See, the rest of the guys with guitars around their neck want credibility. I don't want credibility. That means nothing. Remember, none of these guys learned how to play their instruments properly. They all did it by ear, the lazy man's out. So a big word like "credibility" coming out of a guy who's unqualified to say anything other than "Do you want fries with that?" is delusional. I've never deluded myself about what this is. Kiss appears in comic books and puzzles and condoms and anything else we damn well please. I'm happy that the rest of the bands are afraid of merchandising themselves. They should all be afraid of it, and leave it to Kiss to do everything. And this is just the beginning. As far as I'm concerned, KISStianity is next. I'm going to build my own shrine, and then every dollar I get is going to be tax-free. What do any of the other religions have that we don't have? It's all smoke and mirrors, anyway."
Sobre tipos e ondas da música pop:
"The rule of proper behavior for a hip-hop artist is, you're supposed to be a criminal. You know, the more criminal stuff you have in your past, the higher your credibility. There goes that word again. You wear cowboy hats to get more credibility if you're a country star. If you're a punk kind of guy, well, it's more about how you are: spit-in-the-face, that type of attitude. Each and every one of these genres has rules. And I say, in the nicest possible way, 'Fuck them all', The rules are made to be broken, as far as I'm concerned, because the original spirit of rock 'n' roll was, 'There are no rules'."
Sobre os críticos:
"Critics are an unnecessary life-form on the planet Earth. A long time ago, David Lee Roth said something that I found very apropos. He said, 'You know why critics love Elvis Costello and hate Van Halen? Because critics look like Elvis Costello'."
Trechos de recentíssima entrevista do Gene Simmons (Kiss) ao site "The Onion"...
Sobre os roqueiros que acham que o rock é arte:
"None of these guys ever took any music-theory lessons or anything, and that includes me. None of us ever took the time to go to music school, and we can't, to this day, read or write musical notation. We never took music lessons to learn about that. So the deluded notion that we're making anything other than sugar is nuts. I'm not saying that sugar doesn't taste good, but it burns fast. It's not meant to last. This is not classical music. It's modern, popular music, and for somebody who isn't really qualified to call himself a musician to claim he's making art is, at the very least, delusional."
Sobre os montes de merchandising da banda:
"The more the better. Immediately, I saw that we were a rock 'n' roll brand, not just a rock 'n' roll band. See, the rest of the guys with guitars around their neck want credibility. I don't want credibility. That means nothing. Remember, none of these guys learned how to play their instruments properly. They all did it by ear, the lazy man's out. So a big word like "credibility" coming out of a guy who's unqualified to say anything other than "Do you want fries with that?" is delusional. I've never deluded myself about what this is. Kiss appears in comic books and puzzles and condoms and anything else we damn well please. I'm happy that the rest of the bands are afraid of merchandising themselves. They should all be afraid of it, and leave it to Kiss to do everything. And this is just the beginning. As far as I'm concerned, KISStianity is next. I'm going to build my own shrine, and then every dollar I get is going to be tax-free. What do any of the other religions have that we don't have? It's all smoke and mirrors, anyway."
Sobre tipos e ondas da música pop:
"The rule of proper behavior for a hip-hop artist is, you're supposed to be a criminal. You know, the more criminal stuff you have in your past, the higher your credibility. There goes that word again. You wear cowboy hats to get more credibility if you're a country star. If you're a punk kind of guy, well, it's more about how you are: spit-in-the-face, that type of attitude. Each and every one of these genres has rules. And I say, in the nicest possible way, 'Fuck them all', The rules are made to be broken, as far as I'm concerned, because the original spirit of rock 'n' roll was, 'There are no rules'."
Sobre os críticos:
"Critics are an unnecessary life-form on the planet Earth. A long time ago, David Lee Roth said something that I found very apropos. He said, 'You know why critics love Elvis Costello and hate Van Halen? Because critics look like Elvis Costello'."
26.3.02
Meu blog favorito, o Blogus, do Gustavo e da Alessandra, está de cara nova (não gostei do verde-musgo escolhido, mas as letras ficaram maiores e bem mais legíveis) e com comments! Boa notícia!
E o Gustavo começou uma blognovela que promete. Achei o começo hilário.
E o Gustavo começou uma blognovela que promete. Achei o começo hilário.
25.3.02
Quem ganhou o Oscar este ano fomos nós. A estatueta veio na forma de Woody Allen e seu humor imbatível na festa do novo Teatro Kodak. Por mim, ele podia ficar por ali mesmo alternando piadas com a sempre hilária Whoopi Goldberg pelo resto da noite.
Mas também teve o Sidney Poitier, um gigante em sua dignidade. Que discurso, que dicção perfeita.
E o Cirque du Soleil, uma visão feérica.
Mas também teve o Sidney Poitier, um gigante em sua dignidade. Que discurso, que dicção perfeita.
E o Cirque du Soleil, uma visão feérica.
22.3.02
Minicontos do desconforto - 11
A raiva foi subindo pescoço acima até turvar sua visão. Ficou tudo vermelho. Chutou um balde e ele se desfez em dezenas de cacos de plástico. Tirou da parede o relógio enguiçado e esmigalhou-o sob o pé. Gritou. Finalmente, tonto, caiu sentado no chão, ofegante. A pausa fê-lo recuperar a razão. Tomou um banho frio, bem demorado, vestiu-se, pegou a guitarra e foi para o bar. Confraternizou com os companheiros, bebeu várias taças de brandy e, quando o show começou, transmitiu toda a sua raiva para o instrumento. Qual não foi sua supresa quando a guitarra se soltou de sua mão, arrancou-se da alça e começou a espancar sua cara impiedosamente, agitando-se no ar como um inseto gigante e descontrolado. No fim, ela levitou por alguns segundos e explodiu, vaporizando-se como por mágica.
O público aplaudiu durante meia hora. De pé.
A raiva foi subindo pescoço acima até turvar sua visão. Ficou tudo vermelho. Chutou um balde e ele se desfez em dezenas de cacos de plástico. Tirou da parede o relógio enguiçado e esmigalhou-o sob o pé. Gritou. Finalmente, tonto, caiu sentado no chão, ofegante. A pausa fê-lo recuperar a razão. Tomou um banho frio, bem demorado, vestiu-se, pegou a guitarra e foi para o bar. Confraternizou com os companheiros, bebeu várias taças de brandy e, quando o show começou, transmitiu toda a sua raiva para o instrumento. Qual não foi sua supresa quando a guitarra se soltou de sua mão, arrancou-se da alça e começou a espancar sua cara impiedosamente, agitando-se no ar como um inseto gigante e descontrolado. No fim, ela levitou por alguns segundos e explodiu, vaporizando-se como por mágica.
O público aplaudiu durante meia hora. De pé.
21.3.02
In the back of my Cadillac
A wicked lady, sittin' by my side,
sayin' 'Where are we?'
Stop at Third and Forty-three, exit to the night
It's gonna be ecstacy
This place was meant for me
Feels so good tonight
Who cares about tomorrow?
So baby, you'd better believe...
I'm back, back in the New York Groove!
("New York Groove", Russ Ballard, gravada por Ace Frehley)
A wicked lady, sittin' by my side,
sayin' 'Where are we?'
Stop at Third and Forty-three, exit to the night
It's gonna be ecstacy
This place was meant for me
Feels so good tonight
Who cares about tomorrow?
So baby, you'd better believe...
I'm back, back in the New York Groove!
("New York Groove", Russ Ballard, gravada por Ace Frehley)
20.3.02
19.3.02
Minicontos do desconforto -- 10
Sentiu o cheiro do mar na brisa. As folhas dos flamboyants tremelicavam no fiapinho de sol da tarde, que ia adiantada. Sentada à beira da piscina, uma taça de vinho quase vazia na mão, teve uma leve epifania olfativa. Não viu, nem ouviu o paraíso: apenas sentiu seu cheiro exuberante e estupefaciente. Depois dormiu, serena e apaziguada.
Tempos depois, no dia em que recebeu de um amigo um ramo de rosas vermelhas (daqueles cinematográficos) e não conseguiu aspirar o frescor das flores, finalmente se deu conta de que, para o resto da vida, nenhum cheiro deste mundo seria capaz de satisfazê-la. Com o tempo isso foi minando também seu paladar, já que, sem sentir aquele perfume maravilhoso da comida, perdia o apetite com freqüência. E ela foi sumindo aos poucos diante dos que a amavam, até morrer, sequinha, numa tarde exatamente como aquela à beira da piscina. Ascendeu, e São Pedro a recebeu emocionado, pedindo desculpas pelo karma que tão ferozmente a consumira. E advertiu: "nenhuma dimensão é perfeita. Aqui, você não sentirá nenhum dos odores terrestres, exceto um, que terá a liberdade de escolher".
Embora inspirasse com força e sentisse todos os perfumes do Éden entrando em seus pulmões, ela olhou tristemente para ele.
"Como pode me pedir isso?", exclamou. "Eu não me lembro de nenhum há anos!"
E foi assim que Ingrid conheceu a Suprema Ironia de Deus.
Sentiu o cheiro do mar na brisa. As folhas dos flamboyants tremelicavam no fiapinho de sol da tarde, que ia adiantada. Sentada à beira da piscina, uma taça de vinho quase vazia na mão, teve uma leve epifania olfativa. Não viu, nem ouviu o paraíso: apenas sentiu seu cheiro exuberante e estupefaciente. Depois dormiu, serena e apaziguada.
Tempos depois, no dia em que recebeu de um amigo um ramo de rosas vermelhas (daqueles cinematográficos) e não conseguiu aspirar o frescor das flores, finalmente se deu conta de que, para o resto da vida, nenhum cheiro deste mundo seria capaz de satisfazê-la. Com o tempo isso foi minando também seu paladar, já que, sem sentir aquele perfume maravilhoso da comida, perdia o apetite com freqüência. E ela foi sumindo aos poucos diante dos que a amavam, até morrer, sequinha, numa tarde exatamente como aquela à beira da piscina. Ascendeu, e São Pedro a recebeu emocionado, pedindo desculpas pelo karma que tão ferozmente a consumira. E advertiu: "nenhuma dimensão é perfeita. Aqui, você não sentirá nenhum dos odores terrestres, exceto um, que terá a liberdade de escolher".
Embora inspirasse com força e sentisse todos os perfumes do Éden entrando em seus pulmões, ela olhou tristemente para ele.
"Como pode me pedir isso?", exclamou. "Eu não me lembro de nenhum há anos!"
E foi assim que Ingrid conheceu a Suprema Ironia de Deus.
18.3.02
15.3.02
Olhaí o conto prometido...
A mudança
Crib Tanaka e André Machado
Para ela era difícil. Tudo. Tudo era difícil. Impossível explicar como fazia para tanto sentir e pouco esquecer. Nunca aprendia através de regras. Difícil demais seguir uma linha de pensamento imposta por um e seguida por todos. Odiava não contestar, só aceitar, abaixar a cabeça para o que quer que fosse. Precisava ser convencida de que estava errada. Do contrário, sim, estava certa. Discussão sem argumentos fundados e sem intuições à mostra não era com ela.
Um dia decidiu morar consigo mesma. Arrumou malas e fechou o apartamento onde sobrevivia. Não queria vizinhos, nada de elevador. Nada coletivo. Deixou todos os processos empilhados, junto aos ternos espalhados e aos vinhos caros abertos.
Com o dinheiro que herdara da avó, comprou uma pequena casa, branca, feia e longe de tudo, mas sua. Mudou-se e não avisou a ninguém. Era difícil se despedir. Não sabia nessas horas equilibrar sentimentos e palavras e terminava muda, vendo uma parte dela indo embora, sem ao menos reivindicar afagos.
A casa logo se tornou difícil de organizar. Gostava de coisas diferentes que não combinavam entre si. Entrava em lojas e gastava com objetos indianos, coloridos; com azulejos portugueses, pretos e brancos; com colchas de patchwork; com amuletos tailandeses; e com cocares indígenas. Chegava em casa abarrotada de sacolas. Olhava à sua volta e sentia um misto de desespero com felicidade. Onde pôr todas aquelas coisas que tornavam seus cantos vivos? Terminava dispondo-as, com dificuldade, em buracos ainda não preenchidos, até que tudo se harmonizava.
Os canais via satélite mal pegavam. Fora morar em lugar de difícil acesso, sabia disso. A falta de chiados televisivos -- um som que a embalara durante muitos anos -- era compensada pelo silêncio de mato. Silêncio que descobria aconchegante, de encontros furtivos de folhas, de águas beijando e excitando o solo nos dias de temporal, de setas vermelhas refletidas em cortinas prateadas.
Alterou-se várias vezes, experimentando caules e frutos. Andou descalça em pedras de cheiro de limão e correu equilibrando espontaneidade em braços desritmados, pernas cansadas e pés leves. Nadou em águas cortantes e descansou em verdes fundos de pedras.
Cozinhou, andou, enjoou, correu, desmaiou, sangrou, riu, suou, amargou, queimou, reagiu.
Sentia. Estava em contato -- em primeiro grau. Estava próxima. Sentia o que não via. Sentia sem dificuldade alguma. Sem querer saber o porquê, nem quando.
Lembrou-se dos processos em cima da mesa e do vinho ainda pela metade. Trincou os dentes. Era hora de voltar para casa.
Quando abriram a porta, não a reconheceram a princípio. Um aroma de mato recém-batizado pela chuva emanava de seus cabelos; os olhos se moviam mais rápido que o usual; e deixara as malas pelo caminho, recolhendo em seu lugar folhas e ramos esvoaçantes que, silenciosamente, a haviam convidado para dançar.
O espanto aumentou quando ela se sentou à mesa do escritório, cheirou o vinho e o pôs de lado, pedindo um chá de ervas picantes. Com um ar alheado, começou a folhear os processos, mas as lágrimas logo surgiram com a lembrança de que todo o papelório saíra de uma floresta altiva e generosa. Agora servia para abrigar aquele monte de picuinhas humanas sem sentido.
Irritada, ateou fogo ao processo de um vizinho que reclamava das passadas pesadas do outro no andar de cima, à noite. O fogo lhe deu tesão: incendiou outro e mais outro, até que o escritório começou a arder e a família, a gritar. Sua fúria perdeu qualquer entrave; ela voltara, mas mudara. Não era mais questão de ser convencida de nada: tornou-se, no momento exato que arrebentou os grilhões da Razão para ingressar nas teias da Insânia, uma espécie de xamã elemental, dançando e cantando numa homenagem profunda à terra, celebração que o mundo jamais veria (a não ser umas duas mil e quatrocentas encarnações depois).
Queimou os processos, a família, o apartamento, o cachorro que dormia desavisado no tapete. Banhou-se nas chamas recitando sua canção telúrica. O bairro nunca mais esqueceu o incêndio do edifício Summers. Quando encontraram seus restos calcinados, não entenderam porque eles estavam todos decorados simetricamente com folhas e flores de vivos coloridos.
A mudança
Crib Tanaka e André Machado
Para ela era difícil. Tudo. Tudo era difícil. Impossível explicar como fazia para tanto sentir e pouco esquecer. Nunca aprendia através de regras. Difícil demais seguir uma linha de pensamento imposta por um e seguida por todos. Odiava não contestar, só aceitar, abaixar a cabeça para o que quer que fosse. Precisava ser convencida de que estava errada. Do contrário, sim, estava certa. Discussão sem argumentos fundados e sem intuições à mostra não era com ela.
Um dia decidiu morar consigo mesma. Arrumou malas e fechou o apartamento onde sobrevivia. Não queria vizinhos, nada de elevador. Nada coletivo. Deixou todos os processos empilhados, junto aos ternos espalhados e aos vinhos caros abertos.
Com o dinheiro que herdara da avó, comprou uma pequena casa, branca, feia e longe de tudo, mas sua. Mudou-se e não avisou a ninguém. Era difícil se despedir. Não sabia nessas horas equilibrar sentimentos e palavras e terminava muda, vendo uma parte dela indo embora, sem ao menos reivindicar afagos.
A casa logo se tornou difícil de organizar. Gostava de coisas diferentes que não combinavam entre si. Entrava em lojas e gastava com objetos indianos, coloridos; com azulejos portugueses, pretos e brancos; com colchas de patchwork; com amuletos tailandeses; e com cocares indígenas. Chegava em casa abarrotada de sacolas. Olhava à sua volta e sentia um misto de desespero com felicidade. Onde pôr todas aquelas coisas que tornavam seus cantos vivos? Terminava dispondo-as, com dificuldade, em buracos ainda não preenchidos, até que tudo se harmonizava.
Os canais via satélite mal pegavam. Fora morar em lugar de difícil acesso, sabia disso. A falta de chiados televisivos -- um som que a embalara durante muitos anos -- era compensada pelo silêncio de mato. Silêncio que descobria aconchegante, de encontros furtivos de folhas, de águas beijando e excitando o solo nos dias de temporal, de setas vermelhas refletidas em cortinas prateadas.
Alterou-se várias vezes, experimentando caules e frutos. Andou descalça em pedras de cheiro de limão e correu equilibrando espontaneidade em braços desritmados, pernas cansadas e pés leves. Nadou em águas cortantes e descansou em verdes fundos de pedras.
Cozinhou, andou, enjoou, correu, desmaiou, sangrou, riu, suou, amargou, queimou, reagiu.
Sentia. Estava em contato -- em primeiro grau. Estava próxima. Sentia o que não via. Sentia sem dificuldade alguma. Sem querer saber o porquê, nem quando.
Lembrou-se dos processos em cima da mesa e do vinho ainda pela metade. Trincou os dentes. Era hora de voltar para casa.
Quando abriram a porta, não a reconheceram a princípio. Um aroma de mato recém-batizado pela chuva emanava de seus cabelos; os olhos se moviam mais rápido que o usual; e deixara as malas pelo caminho, recolhendo em seu lugar folhas e ramos esvoaçantes que, silenciosamente, a haviam convidado para dançar.
O espanto aumentou quando ela se sentou à mesa do escritório, cheirou o vinho e o pôs de lado, pedindo um chá de ervas picantes. Com um ar alheado, começou a folhear os processos, mas as lágrimas logo surgiram com a lembrança de que todo o papelório saíra de uma floresta altiva e generosa. Agora servia para abrigar aquele monte de picuinhas humanas sem sentido.
Irritada, ateou fogo ao processo de um vizinho que reclamava das passadas pesadas do outro no andar de cima, à noite. O fogo lhe deu tesão: incendiou outro e mais outro, até que o escritório começou a arder e a família, a gritar. Sua fúria perdeu qualquer entrave; ela voltara, mas mudara. Não era mais questão de ser convencida de nada: tornou-se, no momento exato que arrebentou os grilhões da Razão para ingressar nas teias da Insânia, uma espécie de xamã elemental, dançando e cantando numa homenagem profunda à terra, celebração que o mundo jamais veria (a não ser umas duas mil e quatrocentas encarnações depois).
Queimou os processos, a família, o apartamento, o cachorro que dormia desavisado no tapete. Banhou-se nas chamas recitando sua canção telúrica. O bairro nunca mais esqueceu o incêndio do edifício Summers. Quando encontraram seus restos calcinados, não entenderam porque eles estavam todos decorados simetricamente com folhas e flores de vivos coloridos.
13.3.02
8.3.02
Gente, vai em inglês mesmo, depois traduzo para o próximo post. Mas é imperdível! ;-))))))))
French Intellectuals to be Deployed in Afghanistan To Convince Taleban of Non-Existence of God
The ground war in Afghanistan hotted up yesterday when the Allies revealed plans to airdrop a platoon of crack French existentialist philosophers into the country to destroy the morale of Taleban zealots by proving the non-existence of God. Elements from the feared Jean-Paul Sartre Brigade, or 'Black Berets', will be parachuted into the combat zones to spread doubt, despondency and existential anomie among the enemy.
Hardened by numerous intellectual battles fought during their long occupation of Paris's Left Bank, their first action will be to establish a number of pavement cafes at strategic points near the front lines. There they will drink coffee and talk animatedly about the absurd nature of life and man's lonely isolation in the universe. They will be accompanied by a number of heartbreakingly beautiful girlfriends who will further spread dismay by sticking their tongues in the philosophers' ears every five minutes and looking remote and unattainable to everyone else.
Their leader, Colonel Marc-Ange Belmondo, spoke yesterday of his confidence in the success of their mission. Sorbonne graduate Belmondo, a very intense and unshaven young man in a black pullover, gesticulated wildly and said, "The Taleban are caught in a logical fallacy of the most ridiculous. There is no God and I can prove it. Take your tongue out of my ear, Juliette, I am talking."
Marc-Ange plans to deliver an impassioned thesis on man's nauseating freedom of action with special reference to the work of Foucault and the films of Alfred Hitchcock. However, humanitarian agencies have been quick to condemn the operation as inhumane, pointing out that the effects of passive smoking from the Frenchmens' endless Gitanes could wreak a terrible toll on civilians in the area. Speculation was mounting last night that Britain may also contribute to the effort by dropping Professor Stephen Hawking into Afghanistan to propagate his non-deistic theory of the creation of the universe. Other tactics to demonstrate the non-existence of God will include the dropping of leaflets pointing out the fact that Michael Jackson has a new album out and Oprah Winfrey has not died yet.
French Intellectuals to be Deployed in Afghanistan To Convince Taleban of Non-Existence of God
The ground war in Afghanistan hotted up yesterday when the Allies revealed plans to airdrop a platoon of crack French existentialist philosophers into the country to destroy the morale of Taleban zealots by proving the non-existence of God. Elements from the feared Jean-Paul Sartre Brigade, or 'Black Berets', will be parachuted into the combat zones to spread doubt, despondency and existential anomie among the enemy.
Hardened by numerous intellectual battles fought during their long occupation of Paris's Left Bank, their first action will be to establish a number of pavement cafes at strategic points near the front lines. There they will drink coffee and talk animatedly about the absurd nature of life and man's lonely isolation in the universe. They will be accompanied by a number of heartbreakingly beautiful girlfriends who will further spread dismay by sticking their tongues in the philosophers' ears every five minutes and looking remote and unattainable to everyone else.
Their leader, Colonel Marc-Ange Belmondo, spoke yesterday of his confidence in the success of their mission. Sorbonne graduate Belmondo, a very intense and unshaven young man in a black pullover, gesticulated wildly and said, "The Taleban are caught in a logical fallacy of the most ridiculous. There is no God and I can prove it. Take your tongue out of my ear, Juliette, I am talking."
Marc-Ange plans to deliver an impassioned thesis on man's nauseating freedom of action with special reference to the work of Foucault and the films of Alfred Hitchcock. However, humanitarian agencies have been quick to condemn the operation as inhumane, pointing out that the effects of passive smoking from the Frenchmens' endless Gitanes could wreak a terrible toll on civilians in the area. Speculation was mounting last night that Britain may also contribute to the effort by dropping Professor Stephen Hawking into Afghanistan to propagate his non-deistic theory of the creation of the universe. Other tactics to demonstrate the non-existence of God will include the dropping of leaflets pointing out the fact that Michael Jackson has a new album out and Oprah Winfrey has not died yet.
6.3.02
Meu jogo de Diplomacy voltou à ativa depois de um tempo parado, pois o jogador da Rússia abandonara o país. Com um novo czar, a coisa promete pegar fogo agora. Eu, um pobre general austríaco, estou reduzido a duas peças, uma na Bohemia e outra em Veneza. Tsk, tsk. Mas conto com bons aliados para a guerra. E é disso que a gente precisa, na vida real inclusive, não é mesmo? O mapa do jogo está aqui.
5.3.02
Está no Comunique-se:
Quebra de sigilo de fonte nos EUA
A jornalista Dalia Estévez, correspondente em Washington do mexicano El Financiero, terá que entregar 23 documentos, entre eles correspondência eletrônica, anotações e endereços usados para apurar uma reportagem, à Corte Federal de Virgínia. A Justiça está investigando as relações de uma família mexicana proprietária do Laredo National Bank com o narcotráfico.
As fontes de Dalia também foram usadas por repórteres do The Washington Post, The Dallas Morning News e a Insight Magazine.
A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) classificou a ordem judicial como uma quebra de sigilo das fontes e afirmou que a ação "é uma intervenção direta na atividade jornalística que afeta gravemente o livre floxo informativo, e é uma violação ao direito dos jornalistas a manter sigilo das fontes informativas".
Como é que se pode manter a confiança de uma fonte com uma Justiça invasiva como essa? Que sacanagem!!
Quebra de sigilo de fonte nos EUA
A jornalista Dalia Estévez, correspondente em Washington do mexicano El Financiero, terá que entregar 23 documentos, entre eles correspondência eletrônica, anotações e endereços usados para apurar uma reportagem, à Corte Federal de Virgínia. A Justiça está investigando as relações de uma família mexicana proprietária do Laredo National Bank com o narcotráfico.
As fontes de Dalia também foram usadas por repórteres do The Washington Post, The Dallas Morning News e a Insight Magazine.
A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) classificou a ordem judicial como uma quebra de sigilo das fontes e afirmou que a ação "é uma intervenção direta na atividade jornalística que afeta gravemente o livre floxo informativo, e é uma violação ao direito dos jornalistas a manter sigilo das fontes informativas".
Como é que se pode manter a confiança de uma fonte com uma Justiça invasiva como essa? Que sacanagem!!
"Somente os amantes" -- Capítulo VI
Marcel convidou Otávio para jogar xadrez e, durante a partida, continuaram a conversar.
-- Pelo jeito você não tem muitos amigos por aqui -- comentou com Otávio.
-- Tenho alguns. Mas meu único amigo de verdade neste fim de mundo era o André, que morreu meses atrás num acidente de motocicleta. Você devia tê-lo conhecido. Uma pessoa solar.
-- Fale mais. Não me parece possível que alguém possa influenciá-lo. Estou curioso.
Marcel convidou Otávio para jogar xadrez e, durante a partida, continuaram a conversar.
-- Pelo jeito você não tem muitos amigos por aqui -- comentou com Otávio.
-- Tenho alguns. Mas meu único amigo de verdade neste fim de mundo era o André, que morreu meses atrás num acidente de motocicleta. Você devia tê-lo conhecido. Uma pessoa solar.
-- Fale mais. Não me parece possível que alguém possa influenciá-lo. Estou curioso.
"Somente os amantes" -- Capítulo V
Otávio prosseguiu:
-- Se amo meu pai, o mesmo não se pode dizer de minha mãe. Nossas relações são hoje ditadas por rígidos princípios, algo assim como o decoro parlamentar ou o código de ética de um Lions Clube. Tudo para evitar as brigas de mau gosto que tínhamos no passado.
"É difícil descrever minha mãe. Ela é como Tânatos, tem coração de ferro e vísceras de bronze. Apropriadamente para uma personificação da Morte, trata-se de uma pessoa prática. Só fala através de lugares comuns. É supersticiosa a ponto de não entregar um saleiro diretamente nas mãos de outra pessoa ('senão nós brigamos', diz. Comigo não adiantou nada). É egoísta, profundamente egoísta. Tudo bem, eu adoro os individualistas, os que impõem sua vontade -- mas mesmo eles sabem amar. Tenho absoluta certeza de que ela não ama meu pai, nem jamais me amou. Tem todas as características da mãe típica, , mas sua natureza reprimida vive a traí-la. As coisas que exige de mim e de minha pobre irmã na verdade não dizem respeito a nós dois São ditas -- e pequenos olhares, gestos, expressões e inflexões de voz o demonstram -- para que ela se certifique de que os outros não pensarão mal de si. Mas não quero mais falar dela, isso me entristece.
Otávio prosseguiu:
-- Se amo meu pai, o mesmo não se pode dizer de minha mãe. Nossas relações são hoje ditadas por rígidos princípios, algo assim como o decoro parlamentar ou o código de ética de um Lions Clube. Tudo para evitar as brigas de mau gosto que tínhamos no passado.
"É difícil descrever minha mãe. Ela é como Tânatos, tem coração de ferro e vísceras de bronze. Apropriadamente para uma personificação da Morte, trata-se de uma pessoa prática. Só fala através de lugares comuns. É supersticiosa a ponto de não entregar um saleiro diretamente nas mãos de outra pessoa ('senão nós brigamos', diz. Comigo não adiantou nada). É egoísta, profundamente egoísta. Tudo bem, eu adoro os individualistas, os que impõem sua vontade -- mas mesmo eles sabem amar. Tenho absoluta certeza de que ela não ama meu pai, nem jamais me amou. Tem todas as características da mãe típica, , mas sua natureza reprimida vive a traí-la. As coisas que exige de mim e de minha pobre irmã na verdade não dizem respeito a nós dois São ditas -- e pequenos olhares, gestos, expressões e inflexões de voz o demonstram -- para que ela se certifique de que os outros não pensarão mal de si. Mas não quero mais falar dela, isso me entristece.
4.3.02
Aliás, é bom ver o Marcos de volta às baquetas. Excelente baterista, fanático por jazz (na verdade qualquer coisa que saia do compasso 4/4 ;-)) e meu amigo desde os nossos longínquos doze anos, quando montávamos uma rádio caseira no apê dele e passávamos horas falando bobagem, Marcos estava meio parado por força do excesso de trabalho. Agora, entendeu que relaxar também é preciso, mesmo com toda a carga de responsabilidades. Arrumou uma batera digitalizada e mandou ver. Está tão fissurado que toca duas, três noites por semana (eu fico só no meu sábado, tranqüilão). É divertidíssimo tocar com ele e fazer firulas juntos para atazanar o Hélcio (o big boss) de vez em quando ;-).
Esqueci de contar: sábado passado, no som costumeiro com minha banda das antigas, o Estrada Fróes (eu na guitarra, Hélcio nos teclados e voz, e Marcos na batera), na Casa do Caranguejo, em Charitas, Nikity City, recebi a vista do sr. Felipe "Central de Bobagens" Campbell, valoroso coleguinha dos bits e bytes do "Correio Braziliense", e de minha amiga e parceira de InfoEtc Elis Monteiro. Foi um grande prazer vê-los na night, descontraídos (até porque jornalista techie não resiste a falar da rebimboca da parafuseta quando se encontra por aí ;-)), e espero que voltem mais vezes.
3.3.02
Minicontos do desconforto -- 8
Pensou em como gostaria de morrer. Tocando guitarra, solando freneticamente no meio de um roquenrou, foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça. A segunda: logo após gozar, ao fim de uma trepada perfeita. A terceira, depois de uma saideira estupidamente gelada, fechando o bar no fim da madrugada. Mas a Ceifadora veio quando ele estava jogado no sofá, enrolado na toalha, zapeando a esmo. A última coisa que viu foi um comercial de ração para gatos.
Pensou em como gostaria de morrer. Tocando guitarra, solando freneticamente no meio de um roquenrou, foi a primeira coisa que lhe passou pela cabeça. A segunda: logo após gozar, ao fim de uma trepada perfeita. A terceira, depois de uma saideira estupidamente gelada, fechando o bar no fim da madrugada. Mas a Ceifadora veio quando ele estava jogado no sofá, enrolado na toalha, zapeando a esmo. A última coisa que viu foi um comercial de ração para gatos.
Minicontos do desconforto -- 7
Seu coração fez uma pausa assim que a viu. Adorou o azul de seus olhos e sua boca, que ao sorrir o deixava tonto. Não demorou para que, num fim de tarde, mesmo com a carona esperando, a arrastasse para uma fileira de cadeiras numa passagem no corredor. Tocou seu cabelo, os dedos tremendo. Disse que a amava. Ela riu suavemente e ele ficou com medo. Mas os olhos azuis titubearam, acusando o golpe: não eram indiferentes ao jovem cheio de vida, ávido de romance, que a fitava. E que, nesse pequenino interlúdio, pousou seus lábios sobre os dela, furtando-lhe um beijo que nunca mais esqueceria.
A carona buzinou. "Vá, nós temos amanhã", sussurrou ela. Mas não tiveram. Meses depois, reencontraram-se, os dois com seus respectivos pares e os mesmos olhares de saudade do que poderia ter sido. E desta vez nenhum beijo atrasou a carona dela, de avião, para a capital, de onde desapareceria da vida dele para sempre.
Seu coração fez uma pausa assim que a viu. Adorou o azul de seus olhos e sua boca, que ao sorrir o deixava tonto. Não demorou para que, num fim de tarde, mesmo com a carona esperando, a arrastasse para uma fileira de cadeiras numa passagem no corredor. Tocou seu cabelo, os dedos tremendo. Disse que a amava. Ela riu suavemente e ele ficou com medo. Mas os olhos azuis titubearam, acusando o golpe: não eram indiferentes ao jovem cheio de vida, ávido de romance, que a fitava. E que, nesse pequenino interlúdio, pousou seus lábios sobre os dela, furtando-lhe um beijo que nunca mais esqueceria.
A carona buzinou. "Vá, nós temos amanhã", sussurrou ela. Mas não tiveram. Meses depois, reencontraram-se, os dois com seus respectivos pares e os mesmos olhares de saudade do que poderia ter sido. E desta vez nenhum beijo atrasou a carona dela, de avião, para a capital, de onde desapareceria da vida dele para sempre.
2.3.02
1.3.02
Minicontos do desconforto -- 6
Em seus mais horrendos pesadelos pecuniários, ele morria exatamente como Poe, encontrado na sarjeta, sonhando com uns trocados para tomar a saideira. A vida inteira o dinheiro fugira de suas mãos como se fosse um leitão a caminho do abate. Estava a um passo da mendicância, morando de favor num canto da lavanderia do sítio da ex-sogra, que apesar de tudo gostava dele. Uma noite, pensou nos filhos, agora vivendo em Rondonópolis, e derramou amargas lágrimas. Prostrou-se e fez uma prece a Santa Edwiges, soluçando, pedindo um milagre, prometendo entregar a alma ao jugo de Roma. O milagre aconteceu dois dias depois, quando teve um derrame em meio ao sono e, como disseram, passou desta para a melhor.
A melhor até descobrir que para entrar no céu era preciso RG da alma, CPF (Cadastro de Plasma Funéreo), comprovante de consciência e certidão negativa de pecados.
Em seus mais horrendos pesadelos pecuniários, ele morria exatamente como Poe, encontrado na sarjeta, sonhando com uns trocados para tomar a saideira. A vida inteira o dinheiro fugira de suas mãos como se fosse um leitão a caminho do abate. Estava a um passo da mendicância, morando de favor num canto da lavanderia do sítio da ex-sogra, que apesar de tudo gostava dele. Uma noite, pensou nos filhos, agora vivendo em Rondonópolis, e derramou amargas lágrimas. Prostrou-se e fez uma prece a Santa Edwiges, soluçando, pedindo um milagre, prometendo entregar a alma ao jugo de Roma. O milagre aconteceu dois dias depois, quando teve um derrame em meio ao sono e, como disseram, passou desta para a melhor.
A melhor até descobrir que para entrar no céu era preciso RG da alma, CPF (Cadastro de Plasma Funéreo), comprovante de consciência e certidão negativa de pecados.
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