8.2.02

"Somente os amantes" -- Capítulo IV

Otávio respirou fundo e começou:

-- Oscar Wilde foi o homem que me libertou do desprezo pela vida. Não completamente, é claro, pois ainda considero boa parte deste mundo abominável. Ainda assim, prefiro-o a outros mundos, porque sei que nele também mora o prazer, a única razão pela qual quero morrer bem velho. Hei de sorver prazer até meu último minuto. Mas, você deve se perguntar, o que me tornou tão cínico tão jovem? Para começar, meus pais.

"Costumo achar interessantes os cristãos que agem como pecadores; é a prova de que a tentação é superior à redenção. Materialistas, individualistas, perversos, são verdadeiros apóstolos da maldade em cuja boca a hóstia se torna bolorenta em segundos e o vinho se transforma em vinagre rapidamente. No entanto, vão à igreja todos os domingos, nos feriados santos, criam os filhos no pavor do inferno e se comprazem em tolher a liberdade dos outros. São criaturas horrendas, mas fascinantes.

"Por outro lado, não existe nada pior no mundo que um ateu que age como um cristão. E esse é meu pai. Quando comecei a perceber que Deus era uma grande conversa fiada, até sentia uma ponta de orgulho dele, que professava seu ateísmo em estilo grandioso (em parte para implicar com minha mãe). Depois, descobri que ele era um homem muito consciencioso. Tímido, submisso, preferiu viver de salário vida toda e fez uma opção pelos pobres -- dá aula em colégios públicos. Fala mal dos amigos que tiveram a coragem de se libertar de suas vidas mesquinhas. 'No fim da vida, eles pagarão por isso. Não terão uma aposentadoria para protegê-los', afirma, categórico. Fala igualmente mal dos que fizeram mestrado e se tornaram professores universitários 'pedantes'. Sua figura diz aos que o observam: 'eu me contento com o que tenho'.

"E, pasme, ele tem ambição! Tem sonhos confusos e contraditórios... Ama o socialismo tão fervorosamente que defende Stálin. Mas quase baba ante fotos de castelos medievais, descrições de banquetes aristocráticos, tapeçarias orientais. Venera a nobreza. A etiqueta.

"Como vê, eu não tinha outra saída que não adotar uma postura zombeteira.

"Bom, apesar de tudo, adoro meu pai. Ele é um homem derrotado pelo superego, ou pelo menos vejo a coisa mais ou menos assim: o ego aflora em rápidos lampejos em todas as direções -- e é inexoravelmente estraçalhado pela avalanche da consciência. Enfim, hoje conseguimos conversar um pouco mais, e eu até que gosto do lado aristocrático dele. Socialismo, não suporto. É demodê. Além do quê, sou pretensioso demais para ser socialista. Para mim, na verdade, o socialismo é o ópio dos herdeiros ricos e enfastiados."

Marcel riu e admitiu:

-- É, eu jamais poderia imaginar você num levante operário...

-- Deus me livre -- retorquiu Otávio, e, percebendo o que acabara de dizer, tentou inutilmente reprimir um sorriso. Os dois acabaram soltando uma gargalhada.

-- Mas continue -- pediu Marcel, retomando o fôlego.

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