20.2.02

Reproduzo aqui o Veríssimo de domingo, no Globo -- um jorro, não, um chafariz de inspiração e uma homenagem à nossa memória clássica:

Lolita, ou a memória da água

Luís Fernando Veríssimo

Há tempos apareceu uma teoria segundo a qual existiria uma “memória da água”. A água reteria nas suas moléculas uma “lembrança” recuperável de movimentos e efeitos. A teoria não foi provada, o que é uma pena. Suas possibilidades poéticas eram imensas.

O italiano Roberto Calasso, no seu livro “Literatura e os deuses”, escreve sobre uma “onda mnemônica”, ou vaga de memória que invade a nossa civilização, a intervalos, vinda do passado clássico, com os deuses pagãos surfando em cima. (Esta imagem é minha, não do Calasso, que é um cara sério). Através da História, ou nos deixamos inundar pela onda ou fugimos dela com braçadas decididas.

A Renascença foi uma “onda mnemônica” varrendo a idade das trevas da nossa praia. Já maré baixa da onda, segundo Calasso, aconteceu na França do século dezoito quando “as infantis fábulas gregas”, junto com “o bárbaro Shakespeare e as sórdidas lendas bíblicas” foram todas sumariamente dispensadas como “o trabalho de um esperto sacerdócio determinado a sufocar mentes potencialmente esclarecidas no berço”, por gente como Voltaire. A onda voltou no século dezenove com Nietzsche, que quis recuperar o pensamento mítico pré-cristão e costumava assinar suas cartas “Dionísio”.

Os deuses surfistas vindos do passado assumiam qualquer forma. Escreve Calasso: “Muitas vezes eram reduzidos à mera existência de papel, como alegorias morais, personificações, prosopopéias e outros engenhos do arsenal retórico.” Ou eram “meros pretextos para o lirismo, nada mais do que sons evocativos”. Em qualquer forma, seus anfitriões modernos os mantinham sob controle, eufemismados e disfarçados. Isto nas letras, porque nas artes plásticas houve uma enchente: os deuses heróis tomaram conta e durante quatro séculos foram sujeitos, ou no mínimo coadjuvantes, de toda a pintura e a escultura ocidental. E dê-lhe sátiros e ninfas. Principalmente ninfas. As ninfas trazem na “onda mnemônica” a forma mais antiga e potencialmente mais perigosa de matéria artística, segundo Calasso, que é a obsessão. Homero conta que Apolo, o Caçador Encantado, descobre uma ninfa e uma grande serpente guardando uma vertente de água doce. Tanto a ninfa quanto a serpente são aterradoras, pois o que elas guardam é uma fonte de sabedoria e poder que dará a Apolo o domínio do mistério fluido da vida pela arte, mas em troca o transformará num possuído. Ninfa e serpente são a mesma coisa, a sedução pela arte e a danação do artista na mesma conquista. A correspondência com a “sórdida lenda bíblica” do Paraíso perdido não precisa ser enfatizada.

“Nymphe” em grego quer dizer “menina pronta para o casamento” e também “fonte”. Calasso: “Aproximar-se de uma ninfa é ser apreendido e possuído por alguma coisa, e imergir num elemento ao mesmo tempo terno e instável, que pode ser emocionante mas também pode muito bem ser fatal.” Mas qual era o poder das ninfas, o que eram essas águas mágicas? Há um hino a Apolo que fala do “noeron udaton”, “as águas mentais” que são o presente das ninfas ao deus das artes. Uma vez conquistadas, as ninfas se ofereciam, e a sua oferenda era o “eídolon”, a imagem, o simulacro. Ou seja, a matéria da criação, a literatura. Cada vez que uma ninfa se oferece, evoca este poder que precede a palavra, este manancial de vida que abastece o artista, ou que ele imita, ou no qual se afoga.

Sócrates se descrevia como um “nymphóleptos”, alguém “capturado pelas ninfas”. O mais notório “nymphóleptos” da literatura moderna é Humbert Humbert, o professor pedófilo da tragicomédia de Vladimir Nabokov, “Lolita”. O desafortunado Humbert Humbert é um “caçador encantado” que persegue a sua ninfeta até possuí-la (num motel chamado “A caçadora encantada”), e dali em diante é possuído por ela. Descrevendo sua emoção ao ver Lolita pela primeira vez no quintal da sua casa, seminua, “numa poça de sol”, Humbert Humbert diz que “uma onda de mar azul” cresceu sob o seu coração. Parte da sua obsessão com a ninfeta é a memória que ela lhe traz de um amor pré-pubescente na beira do Mediterrâneo, a perdida Annabel, que deve o nome que Nabokov lhe deu a Annabel Lee do poema de Edgar Allan Poe. Outro “nymphóleptos”, outro possuído.

Nabokov, que se saiba, não era um pedófilo, portanto seu livro é um genial respingo de “onda mnemônica”, ou um mergulho deliberado nas “águas mentais” de alusões e significados que a onda nos traz, lá de trás. Para Calasso, “a verdade esotérica” de “Lolita” está numa única frase de Humbert Humbert: “A ciência da nympholepsia é uma ciência precisa.” O que Nabokov não diz é que esta “ciência precisa” é exatamente uma que ele exerceu durante toda a vida. Não a perseguição de ninfetas, mas a perseguição da palavra exata e do mistério que a ordena. Da literatura.


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