26.2.02

Minicontos do desconforto -- 5

A nevasca seguia virulenta lá fora; dentro, o troar dos aplausos era inesgotável, irreprimível. Chamado ao palco, os gritos de "O autor! O autor!" transformando-o num títere gigante, postou-se no proscênio, como fizera nos últimos anos, impecavelmente elegante na capa Inverness e tirando da cigarreira dourada um dos incontáveis cigarros que o acompanhavam após os jantares no Savoy.

Ao dar a primeira tragada, viu na quarta fileira a Desgraça aplaudindo de pé, num longo vestido negro adornado por um único rubi cor de sangue. Naquela noite, decidiu: deixaria a vida de dissipação e recolher-se-ia num mosteiro, onde escreveria suas melhores obras, frutos da reflexão de que tanto precisava.

Mas a manhã surgiu magnífica, sem uma nuvem no céu, e lhe trouxe agradável companhia. Sentia-se novo, e saiu para passear em seu cabriolé de plantão. Anos depois, na prisão, falido, recordaria: fora a Beleza que o lançara ao abismo.

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