15.2.02

Crib Tanaka e eu fizemos um novo conto. Estou tendo a honra de publicá-lo em primeira mão.

Réquiem para um amor

de André Machado e Crib Tanaka

Ele estava ouvindo ao longe os primeiros acordes de "Highway Star" naquele show orgiástico que o Deep Purple fizera no Japão em 1972. O teclado de Jon Lord suave brincando com as notas, depois o baixo de Roger Glover, a batida impiedosa de Ian Paice e por fim a guitarra ensandecida e sangrando de Ritchie Blackmore, urrando de prazer e antecipação. Tudo no meio de uma nuvem lilás: estava aparentemente sentado à beira de uma ravina em meio ao crepúsculo. Do outro lado, podia ver os longos cabelos castanhos de uma silhueta feminina agitando-se ao toque do vento. Contra o lusco-fusco era impossível enxergar sua face, mas ela estava vestida com a mesma camisola diáfana que dera a Eleonora anos atrás.

Pensou em Eleonora, em como sentia a falta da verdadeira Eleonora há milênios. Ela continuava a seu lado, mas parecia que uma parte sua morrera depois do buquê. Foi no quinto aniversário de casamento. Um mês antes, havia notado que ela estava alegre demais -- havia algo de pura ansiedade na maneira como descrevia seu dia, comentava as notícias, falava dos amigos. Eleonora era dona de um espírito mordaz, tinha um senso de humor quase britânico, sutil. Naquele dia -- estava chovendo, ele recordava - ela parecia uma criança na expectativa de um passeio com o pai que não via há muito tempo. Isto é, até o fim da tarde, quando chegou o mensageiro. Trazia uma dúzia de rosas amarelas. Ela ficou pálida, emudeceu. Jantou com ele à luz de velas, como haviam combinado, mas não pronunciou uma palavra.

Fizeram amor naquela noite, mas ele se arrependeu. Ela não estava ali e ele precisou fingir que gozara para que aquilo acabasse rápido. Foi fumar um cigarro na varanda. Estaria Eleonora tendo um caso? Se fosse isso, não poderia reclamar, já que ele fizera das suas no ano anterior, e não ouvira mais que uma elegante frase de efeito dos lábios dela. Tudo continuara bem, o "affair" terminara, e ele disfarçadamente procurou compensar sua falta com presentes, viagens, pequenos agrados diários. E agora, aquelas rosas... De quem seriam? Não viera cartão nenhum, ele mesmo abrira a porta para o mensageiro.

Começou a ventar mais forte na ravina. Ele se desequilibrou e, antes de começar a cair, viu que a mulher de cabelos castanhos sorria, mas não conseguia ver seus olhos.

Acordou ofegante no sofá, diante do qual se enfileiravam garrafas de cerveja na mesina de tampo de vidro. Estava tonto e com uma enxaqueca oriunda diretamente do terceiro círculo do inferno. O "Made in Japan" rodava no aparelho de som, rsk, rsk, rsk.

Então notou as roupas espalhadas pela casa, numa espécie de trilha que ia da porta da sala até o corredor, onde a mala estava atirada a um canto. Eleonora tinha viajado há uma semana, a trabalho, dissera, avisando que retornaria dentro de um mês. Levantou-se e seguiu a trilha, trôpego. Da porta do quarto vinha um cheiro de mato molhado.

Ele entrou e estacou. Uma mulher de cabelos castanhos estava deitada na cama, completamente nua. A seu lado havia um buquê de rosas amarelas. Linhas de um lilás dormente listravam o corpo dela. Ela o olhava com desejo e pavor. Entreabria a boca pedindo um beijo, mas retraía o corpo. Subitamente, figuras de luz começaram a desenhar todo o quarto. O corpo dela passava frieza pelo lilás que vestia, mas eram animalescas as listras que o estampavam. Ela, puro animal arredio na cama.

Sombras azul-turquesa criavam figuras confusas, misturadas, sem fim, que corriam pela parede e pelo teto. Ele se olhava e via as próprias mãos com outra cor. Aquela mulher nua em sua cama lembrou-lhe que Eleonora nunca o olhava nos olhos na hora do sexo.

A curiosidade superara o azul das sombras. Aproximou-se. Caminhava lentamente, tentando enxergar melhor. Via seios e ventre continuarem em grossas coxas macias. Ainda ouvia, ao fundo, "Highway Star". Sentou-se na cama, ao lado do que agora denominava uma visão venusiana. Os cabelos cobriam parte do rosto dela e caíam pelos ombros bem distribuídos entre carne e ossos pontudos e largos. No chão, uma camisola.

Tocou-a na barriga, de onde todos os seres humanos tiram sua força. Sentiu a superfície d’alma, macia e gelada. Subiu a mão e afastou o fino e longo cabelo do rosto. Queria vislumbrar com que cor ela o enxergava. A visão que teve foi perturbadora. Distinguiu nela os olhos de Eleonora, os mesmos olhos castanhos, temerosos, fugitivos. Os olhos de Eleonora brigando com o corpo lilás, listrado, instigante, animalesco, fêmea. Sentia o cheiro de rosas frias. Fechou os olhos e deitou ao seu lado. Acabara de morrer um amor.

O primeiro beijo seguiu a voz de Gillan:

"Nobody gonna take my girl
I'm gonna keep her to the end
Nobody gonna have my girl
She stays close on every bend
Oooh she's a killing machine
She's got everything
Like a moving mouth
body control and everything
I love her
I need her
I seed her
Yeah, she turns me on..."

* * *

Ela podia ouvir claramente os primeiros acordes de "Child in Time" ecoando no fundo de uma ravina. O sol acordava, vermelho. Do outro lado do abismo, um homem nu; não podia ver seu rosto, envolto nas setas quentes da aurora.

Ele estava sorrindo, de algum modo sorria, e ela pôde sentir um beijo, antes de ele se voltar e sumir na aura rósea do sol.

Eleonora despertou e a primeira coisa que ouviu foi o rugido da turbina. A segunda foi a voz gentil e mecânica da aeromoça lhe oferecendo um café.

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