1.2.02

Do genial Lima Barreto, em "Recordações do escrivão Isaías Caminha", meu livro preferido do autor. Vejam bem: é de 1909.

"Cheguei às oito horas à redação. Floc, de casaca, dava o último retoque na tradução do folhetim. Ia ao Lírico. Estava cercado de dicionários e exalava perfumes. Em breve saiu e a redação a pouco e pouco se esvaziou. Pela meia-noite estava só o redator de plantão; o repórter de serviço tinha adoecido e os outros, à míngua de novidades, tinham desaparecido pelos cafés e cervejarias. Pouco depois da meia-noite, Floc voltou. Vinha alegre. A sua fisionomia irradiava satisfação e no seu olhar bailavam coisas fugidias e doces.

(...)

Floc pusera-se à mesa em atitude de escrever. Levei-lhe papel e tinta, e o critico, preparada vagarosamente a caneta, arrumado o papel, acendeu um charuto e ficou por instantes abismado numa grande cisma sem fim... Tinha medo de começar. Tinha visto tanta coisa bela, tanta carne moça e boa, que ele queria lançar o artigo como um remígio para o alto, para as distantes regiões da arte e da beleza, não perdendo uma só idéia fugidia, transmitindo as emoções sentidas naquelas deliciosas horas em que contemplou as mais belas e caras mulheres da cidade, ouvindo aquela música lânguida de Itália cheia de sol, de história e de amor. Como que senti que ele tentava pôr na sua crônica um pouco dos sonhos sonhados à vista daqueles colos nus e tratados, daqueles olhares faiscantes, e também a sensação quase irregistrável da música, o roçagar das sedas, a olência dos perfumes a pairar naquele ambiente fechado, uma impressão a tocar outra, bailando sem serem vistas nos ares polvilhados de luz, da luz azul da eletricidade. Eram todos os sentidos que tinham vivido: a sensação particular de um provocando sensações aos outros e todas elas sacolejando a sua personalidade com aquele hercúleo esforço para colhê-las todas. Pensava...

Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever, emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes, não gostou, rasgou...

Recomeçou... A sua fisionomia estava transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os olhos estavam fixos e a boca, cerrada nervosamente, custava a abrir-se para aspirar rapidamente o charuto. Toda a sua fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou:

— Caminha! Vai buscar aí cachaça! Anda!

Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma, prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador, tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole. Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumava agora um cigarro sobre outro; não ia até o fim, atirava-o em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela, debruçou-se e o paginador voltou:

— "Seu" Couto!

— Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?...

Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a resistir. Depois de vinte minutos, o paginador voltou:

— Espere um pouco, disse o crítico.

O operário saiu. Floc esteve um instante com a cabeça entre as mãos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o lado estava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e às ambições."

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