26.2.02
Minicontos do desconforto -- 5
A nevasca seguia virulenta lá fora; dentro, o troar dos aplausos era inesgotável, irreprimível. Chamado ao palco, os gritos de "O autor! O autor!" transformando-o num títere gigante, postou-se no proscênio, como fizera nos últimos anos, impecavelmente elegante na capa Inverness e tirando da cigarreira dourada um dos incontáveis cigarros que o acompanhavam após os jantares no Savoy.
Ao dar a primeira tragada, viu na quarta fileira a Desgraça aplaudindo de pé, num longo vestido negro adornado por um único rubi cor de sangue. Naquela noite, decidiu: deixaria a vida de dissipação e recolher-se-ia num mosteiro, onde escreveria suas melhores obras, frutos da reflexão de que tanto precisava.
Mas a manhã surgiu magnífica, sem uma nuvem no céu, e lhe trouxe agradável companhia. Sentia-se novo, e saiu para passear em seu cabriolé de plantão. Anos depois, na prisão, falido, recordaria: fora a Beleza que o lançara ao abismo.
A nevasca seguia virulenta lá fora; dentro, o troar dos aplausos era inesgotável, irreprimível. Chamado ao palco, os gritos de "O autor! O autor!" transformando-o num títere gigante, postou-se no proscênio, como fizera nos últimos anos, impecavelmente elegante na capa Inverness e tirando da cigarreira dourada um dos incontáveis cigarros que o acompanhavam após os jantares no Savoy.
Ao dar a primeira tragada, viu na quarta fileira a Desgraça aplaudindo de pé, num longo vestido negro adornado por um único rubi cor de sangue. Naquela noite, decidiu: deixaria a vida de dissipação e recolher-se-ia num mosteiro, onde escreveria suas melhores obras, frutos da reflexão de que tanto precisava.
Mas a manhã surgiu magnífica, sem uma nuvem no céu, e lhe trouxe agradável companhia. Sentia-se novo, e saiu para passear em seu cabriolé de plantão. Anos depois, na prisão, falido, recordaria: fora a Beleza que o lançara ao abismo.
25.2.02
Reproduzo aqui o artigo que publiquei hoje no Informática Etc, no Globo:
Blognovela, uma idéia postada no ar
André Machado
Tenho dois blogs, um de poesia, o “Comentários e versos do cadafalso”, de poesia, em <andremachado.blogspot.com>, e o “Cadafalso II”, de prosa. Estou postando no segundo um romance que escrevi em 1991, “Somente os amantes”. Entretanto, venho prosseguindo muito devagar, bem mais do que desejaria. O livro é relativamente grande, tem mais de 120 laudas, e à medida que comecei a digitá-lo e postá-lo, percebi que os capítulos eram muito extensos para o formato de um blog. Estou por isso redimensionando-os para que fiquem mais curtos, e criando novos climas na história sem querer (ou não).
***
Depois disso, refleti: o formato ideal para esse tipo de página pessoal seria uma novela curta, um folhetim cujas partes não fossem tão extensas e que se apresentasse mais objetivo, direto, dentro do estilo peculiar de um blog. Dias mais tarde, abri o arquivo de um livro inacabado, de 1998, que fala da paixão de um jornalista por uma mulher misteriosa que certa tarde lhe entrega um romance sobre imortalidade dentro da livraria do Palácio do Catete. E percebi que ali estava o que procurava: capítulos mais curtos, linguagem mais ágil, um ambiente de criação mais livre... No mesmo instante comecei mentalmente a chamar a história de “blognovela” e pensei no que faria para terminá-la.
***
A idéia do folhetim, naturalmente, não é nova. Sterne, Dumas e Dickens, entre outros, a aproveitaram com maestria. No século passado, com o advento da televisão, o folhetim transformou-se na nossa conhecida telenovela, um formato ainda extremamente popular mas que, acredito, dá sinais de exaustão. Eu costumava assistir a novelas quando era mais jovem, em especial às de Dias Gomes, como “O bem-amado”, “Bandeira 2”, “Saramandaia”... Mas as atuais me parecem pasteurizadas demais. E hoje, com a velocidade da informação, existe uma busca incessante por uma linguagem mais rápida, precisa, encontrada, por exemplo, em determinados seriados na TV por assinatura com textos enxutos e implacáveis, seja na esfera da comédia, do drama ou da ocorrência policial. Este é um dos caminhos que poderiam, talvez, ser adaptados para a ficção na internet, que trouxe de volta o prazer do texto, mas tem suas idiossincrasias virtuais: precisa comunicar instantaneamente, do contrário vamos adiante; não deve cuspir “calhamaços” de bits, pelo mesmo motivo; e precisa conter alguma forma de interação com o internauta que seja utilizável com simplicidade a qualquer impulso. Como um comment . Já repararam que escrevemos comments quase sempre num ímpeto?
***
Por isso acho que a década que adentramos vai ver o nascimento dos folhetins digitais -— nada a ver com e-books —, que vão criar uma linguagem própria a partir da concisão e certamente revolucionar, de alguma forma, a literatura. Os blogs têm papel fundamental nesse processo incontrolável e anárquico, bem ao estilo da Grande Rede, e são o meio ideal para a propagação das obras. Quem sabe não surge daqui a um tempo um grupo de intelectuais dispostos a romper com a mesmice do meio acadêmico e editorial e prontos a organizar uma “Semana de Arte Bloguerna”? Ela poderia acontecer no próprio ciberespaço. Está mais do que na hora de sacudir os conceitos de copyright, não sei se com o copyleft da Fundação Software Livre, para citar um exemplo, mas pelo menos com idéias e conceitos que sejam mais adequados a um meio tão plural quanto a web.
De modo que, mesmo postando devagarinho o romance, estou finalizando minha blognovela e pretendo postá-la em breve a fim de contribuir para o debate. Não só os capítulos serão menores, mas seu número será limitado para evitar uma quantidade interminável de posts. A linguagem também é menos formal do que a de meus escritos anteriores, sem desmerecer as idéias que quero passar. Existem ainda outras formas ideais para um blog, como minitextos — como a interessante série “Encontros e Desencontros”, escrita por Alessandra Archer <www.falae.com.br/encontrosedesencontros>, e o desafio de historietas de 300 toques do Falaê, em <www.falae.com.br/300.html>. Para não falar nos posts de poesia.
***
Junto com os criativos webdesigners soltos por aí, tenho certeza de que nós, webwriters, podemos fazer uma diferença. E, se algum dia o evento que sugeri tomar forma, estaremos com certeza em vantagem com relação ao pessoal de 1922, pois haverá um público bem mais receptivo do que os burgueses que foram ver os modernos em SP e atiraram legumes no palco.
Bem, pode ser que os hackers do mal sejam reacionários em termos de literatura... mas no lo creo . ;-)
Blognovela, uma idéia postada no ar
André Machado
Tenho dois blogs, um de poesia, o “Comentários e versos do cadafalso”, de poesia, em <andremachado.blogspot.com>, e o “Cadafalso II”, de prosa. Estou postando no segundo um romance que escrevi em 1991, “Somente os amantes”. Entretanto, venho prosseguindo muito devagar, bem mais do que desejaria. O livro é relativamente grande, tem mais de 120 laudas, e à medida que comecei a digitá-lo e postá-lo, percebi que os capítulos eram muito extensos para o formato de um blog. Estou por isso redimensionando-os para que fiquem mais curtos, e criando novos climas na história sem querer (ou não).
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Depois disso, refleti: o formato ideal para esse tipo de página pessoal seria uma novela curta, um folhetim cujas partes não fossem tão extensas e que se apresentasse mais objetivo, direto, dentro do estilo peculiar de um blog. Dias mais tarde, abri o arquivo de um livro inacabado, de 1998, que fala da paixão de um jornalista por uma mulher misteriosa que certa tarde lhe entrega um romance sobre imortalidade dentro da livraria do Palácio do Catete. E percebi que ali estava o que procurava: capítulos mais curtos, linguagem mais ágil, um ambiente de criação mais livre... No mesmo instante comecei mentalmente a chamar a história de “blognovela” e pensei no que faria para terminá-la.
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A idéia do folhetim, naturalmente, não é nova. Sterne, Dumas e Dickens, entre outros, a aproveitaram com maestria. No século passado, com o advento da televisão, o folhetim transformou-se na nossa conhecida telenovela, um formato ainda extremamente popular mas que, acredito, dá sinais de exaustão. Eu costumava assistir a novelas quando era mais jovem, em especial às de Dias Gomes, como “O bem-amado”, “Bandeira 2”, “Saramandaia”... Mas as atuais me parecem pasteurizadas demais. E hoje, com a velocidade da informação, existe uma busca incessante por uma linguagem mais rápida, precisa, encontrada, por exemplo, em determinados seriados na TV por assinatura com textos enxutos e implacáveis, seja na esfera da comédia, do drama ou da ocorrência policial. Este é um dos caminhos que poderiam, talvez, ser adaptados para a ficção na internet, que trouxe de volta o prazer do texto, mas tem suas idiossincrasias virtuais: precisa comunicar instantaneamente, do contrário vamos adiante; não deve cuspir “calhamaços” de bits, pelo mesmo motivo; e precisa conter alguma forma de interação com o internauta que seja utilizável com simplicidade a qualquer impulso. Como um comment . Já repararam que escrevemos comments quase sempre num ímpeto?
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Por isso acho que a década que adentramos vai ver o nascimento dos folhetins digitais -— nada a ver com e-books —, que vão criar uma linguagem própria a partir da concisão e certamente revolucionar, de alguma forma, a literatura. Os blogs têm papel fundamental nesse processo incontrolável e anárquico, bem ao estilo da Grande Rede, e são o meio ideal para a propagação das obras. Quem sabe não surge daqui a um tempo um grupo de intelectuais dispostos a romper com a mesmice do meio acadêmico e editorial e prontos a organizar uma “Semana de Arte Bloguerna”? Ela poderia acontecer no próprio ciberespaço. Está mais do que na hora de sacudir os conceitos de copyright, não sei se com o copyleft da Fundação Software Livre, para citar um exemplo, mas pelo menos com idéias e conceitos que sejam mais adequados a um meio tão plural quanto a web.
De modo que, mesmo postando devagarinho o romance, estou finalizando minha blognovela e pretendo postá-la em breve a fim de contribuir para o debate. Não só os capítulos serão menores, mas seu número será limitado para evitar uma quantidade interminável de posts. A linguagem também é menos formal do que a de meus escritos anteriores, sem desmerecer as idéias que quero passar. Existem ainda outras formas ideais para um blog, como minitextos — como a interessante série “Encontros e Desencontros”, escrita por Alessandra Archer <www.falae.com.br/encontrosedesencontros>, e o desafio de historietas de 300 toques do Falaê, em <www.falae.com.br/300.html>. Para não falar nos posts de poesia.
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Junto com os criativos webdesigners soltos por aí, tenho certeza de que nós, webwriters, podemos fazer uma diferença. E, se algum dia o evento que sugeri tomar forma, estaremos com certeza em vantagem com relação ao pessoal de 1922, pois haverá um público bem mais receptivo do que os burgueses que foram ver os modernos em SP e atiraram legumes no palco.
Bem, pode ser que os hackers do mal sejam reacionários em termos de literatura... mas no lo creo . ;-)
22.2.02
"He's on the edge, he can feel it in his heart
This time the pressure's really on
He's gonna fight it, might even steal a guitar
This time tomorrow he'll be gone
There ain't nobody gonna tell him what to do
Think he's a little like me and you"
(Rock and roll hell, Kiss, do "Creatures of the night", 1982)
This time the pressure's really on
He's gonna fight it, might even steal a guitar
This time tomorrow he'll be gone
There ain't nobody gonna tell him what to do
Think he's a little like me and you"
(Rock and roll hell, Kiss, do "Creatures of the night", 1982)
21.2.02
Minicontos do desconforto -- 4
Leu o texto e uma nota em sustenido soou em sua espinha. Leu de novo, com a certeza de que penetrava na alma de quem o escrevera, e sentiu o cérebro vacilar, como se as meninges suplicassem por um beijo daquela essência. Estava apaixonado por aquela angústia, que se casava com sua tortura interior como um Lego aconchegado a outro Lego e esquecido durante anos. Mas ficou com medo de dizer isso à autora (sim, era uma autora), então mandou um e-mail tímido.
Quando ela respondeu, três dias depois, ele já tinha sido expulso do prédio por arrancar todas as rosas do jardim e tentar enfiá-las no HD.
Leu o texto e uma nota em sustenido soou em sua espinha. Leu de novo, com a certeza de que penetrava na alma de quem o escrevera, e sentiu o cérebro vacilar, como se as meninges suplicassem por um beijo daquela essência. Estava apaixonado por aquela angústia, que se casava com sua tortura interior como um Lego aconchegado a outro Lego e esquecido durante anos. Mas ficou com medo de dizer isso à autora (sim, era uma autora), então mandou um e-mail tímido.
Quando ela respondeu, três dias depois, ele já tinha sido expulso do prédio por arrancar todas as rosas do jardim e tentar enfiá-las no HD.
20.2.02
Minicontos do desconforto -- 3
Por pouco não morreu de tristeza quando a filha o chamou de mal-humorado. E no entanto era ela que ficava dia a dia mais rabugenta com ele, que se encolhia diante de suas certezas veementes. No aniversário, deu a ela um espelho quebrado. "Para que serve?", perguntou, zombeteira. "Para você enxergar melhor a fratura em sua alma", foi a resposta.
Ele fugiu de casa bem velhinho e expirou sorridente à beira da lagoa que amava.
Ela tinha se matado vinte anos antes. Cortara-se com um caco do espelho.
Por pouco não morreu de tristeza quando a filha o chamou de mal-humorado. E no entanto era ela que ficava dia a dia mais rabugenta com ele, que se encolhia diante de suas certezas veementes. No aniversário, deu a ela um espelho quebrado. "Para que serve?", perguntou, zombeteira. "Para você enxergar melhor a fratura em sua alma", foi a resposta.
Ele fugiu de casa bem velhinho e expirou sorridente à beira da lagoa que amava.
Ela tinha se matado vinte anos antes. Cortara-se com um caco do espelho.
Minicontos do desconforto -- 2
Abadon, o exterminador, acordou e viu que estava no céu, cercado de anjos tocando liras. "Deve ser um pesadelo, só pode ser", pensou. Foi quando São Pedro passou ali perto e, sorrindo marotamente, lembrou-lhe que ele poupara aquele porquinho-da-índia em seu caminho de devastação depois de um porre no Mardi Gras. "Agora agüenta", concluiu o santo.
Abadon chorou as primeiras lágrimas de um demônio desde que Lúcifer caíra do céu do Éden.
Abadon, o exterminador, acordou e viu que estava no céu, cercado de anjos tocando liras. "Deve ser um pesadelo, só pode ser", pensou. Foi quando São Pedro passou ali perto e, sorrindo marotamente, lembrou-lhe que ele poupara aquele porquinho-da-índia em seu caminho de devastação depois de um porre no Mardi Gras. "Agora agüenta", concluiu o santo.
Abadon chorou as primeiras lágrimas de um demônio desde que Lúcifer caíra do céu do Éden.
Minicontos do desconforto -- 1
O quê?, perguntou ele quando ela anunciou que estava indo embora de vez. Ela não respondeu. Ele finalmente desviou o olhar da TV e perguntou por quê. Ela riu e disse apenas, “Você é um relógio tão perfeito que não se pode nem acertá-lo para um horário de verão." E se foi.
O quê?, perguntou ele quando ela anunciou que estava indo embora de vez. Ela não respondeu. Ele finalmente desviou o olhar da TV e perguntou por quê. Ela riu e disse apenas, “Você é um relógio tão perfeito que não se pode nem acertá-lo para um horário de verão." E se foi.
Reproduzo aqui o Veríssimo de domingo, no Globo -- um jorro, não, um chafariz de inspiração e uma homenagem à nossa memória clássica:
Lolita, ou a memória da água
Luís Fernando Veríssimo
Há tempos apareceu uma teoria segundo a qual existiria uma “memória da água”. A água reteria nas suas moléculas uma “lembrança” recuperável de movimentos e efeitos. A teoria não foi provada, o que é uma pena. Suas possibilidades poéticas eram imensas.
O italiano Roberto Calasso, no seu livro “Literatura e os deuses”, escreve sobre uma “onda mnemônica”, ou vaga de memória que invade a nossa civilização, a intervalos, vinda do passado clássico, com os deuses pagãos surfando em cima. (Esta imagem é minha, não do Calasso, que é um cara sério). Através da História, ou nos deixamos inundar pela onda ou fugimos dela com braçadas decididas.
A Renascença foi uma “onda mnemônica” varrendo a idade das trevas da nossa praia. Já maré baixa da onda, segundo Calasso, aconteceu na França do século dezoito quando “as infantis fábulas gregas”, junto com “o bárbaro Shakespeare e as sórdidas lendas bíblicas” foram todas sumariamente dispensadas como “o trabalho de um esperto sacerdócio determinado a sufocar mentes potencialmente esclarecidas no berço”, por gente como Voltaire. A onda voltou no século dezenove com Nietzsche, que quis recuperar o pensamento mítico pré-cristão e costumava assinar suas cartas “Dionísio”.
Os deuses surfistas vindos do passado assumiam qualquer forma. Escreve Calasso: “Muitas vezes eram reduzidos à mera existência de papel, como alegorias morais, personificações, prosopopéias e outros engenhos do arsenal retórico.” Ou eram “meros pretextos para o lirismo, nada mais do que sons evocativos”. Em qualquer forma, seus anfitriões modernos os mantinham sob controle, eufemismados e disfarçados. Isto nas letras, porque nas artes plásticas houve uma enchente: os deuses heróis tomaram conta e durante quatro séculos foram sujeitos, ou no mínimo coadjuvantes, de toda a pintura e a escultura ocidental. E dê-lhe sátiros e ninfas. Principalmente ninfas. As ninfas trazem na “onda mnemônica” a forma mais antiga e potencialmente mais perigosa de matéria artística, segundo Calasso, que é a obsessão. Homero conta que Apolo, o Caçador Encantado, descobre uma ninfa e uma grande serpente guardando uma vertente de água doce. Tanto a ninfa quanto a serpente são aterradoras, pois o que elas guardam é uma fonte de sabedoria e poder que dará a Apolo o domínio do mistério fluido da vida pela arte, mas em troca o transformará num possuído. Ninfa e serpente são a mesma coisa, a sedução pela arte e a danação do artista na mesma conquista. A correspondência com a “sórdida lenda bíblica” do Paraíso perdido não precisa ser enfatizada.
“Nymphe” em grego quer dizer “menina pronta para o casamento” e também “fonte”. Calasso: “Aproximar-se de uma ninfa é ser apreendido e possuído por alguma coisa, e imergir num elemento ao mesmo tempo terno e instável, que pode ser emocionante mas também pode muito bem ser fatal.” Mas qual era o poder das ninfas, o que eram essas águas mágicas? Há um hino a Apolo que fala do “noeron udaton”, “as águas mentais” que são o presente das ninfas ao deus das artes. Uma vez conquistadas, as ninfas se ofereciam, e a sua oferenda era o “eídolon”, a imagem, o simulacro. Ou seja, a matéria da criação, a literatura. Cada vez que uma ninfa se oferece, evoca este poder que precede a palavra, este manancial de vida que abastece o artista, ou que ele imita, ou no qual se afoga.
Sócrates se descrevia como um “nymphóleptos”, alguém “capturado pelas ninfas”. O mais notório “nymphóleptos” da literatura moderna é Humbert Humbert, o professor pedófilo da tragicomédia de Vladimir Nabokov, “Lolita”. O desafortunado Humbert Humbert é um “caçador encantado” que persegue a sua ninfeta até possuí-la (num motel chamado “A caçadora encantada”), e dali em diante é possuído por ela. Descrevendo sua emoção ao ver Lolita pela primeira vez no quintal da sua casa, seminua, “numa poça de sol”, Humbert Humbert diz que “uma onda de mar azul” cresceu sob o seu coração. Parte da sua obsessão com a ninfeta é a memória que ela lhe traz de um amor pré-pubescente na beira do Mediterrâneo, a perdida Annabel, que deve o nome que Nabokov lhe deu a Annabel Lee do poema de Edgar Allan Poe. Outro “nymphóleptos”, outro possuído.
Nabokov, que se saiba, não era um pedófilo, portanto seu livro é um genial respingo de “onda mnemônica”, ou um mergulho deliberado nas “águas mentais” de alusões e significados que a onda nos traz, lá de trás. Para Calasso, “a verdade esotérica” de “Lolita” está numa única frase de Humbert Humbert: “A ciência da nympholepsia é uma ciência precisa.” O que Nabokov não diz é que esta “ciência precisa” é exatamente uma que ele exerceu durante toda a vida. Não a perseguição de ninfetas, mas a perseguição da palavra exata e do mistério que a ordena. Da literatura.
Lolita, ou a memória da água
Luís Fernando Veríssimo
Há tempos apareceu uma teoria segundo a qual existiria uma “memória da água”. A água reteria nas suas moléculas uma “lembrança” recuperável de movimentos e efeitos. A teoria não foi provada, o que é uma pena. Suas possibilidades poéticas eram imensas.
O italiano Roberto Calasso, no seu livro “Literatura e os deuses”, escreve sobre uma “onda mnemônica”, ou vaga de memória que invade a nossa civilização, a intervalos, vinda do passado clássico, com os deuses pagãos surfando em cima. (Esta imagem é minha, não do Calasso, que é um cara sério). Através da História, ou nos deixamos inundar pela onda ou fugimos dela com braçadas decididas.
A Renascença foi uma “onda mnemônica” varrendo a idade das trevas da nossa praia. Já maré baixa da onda, segundo Calasso, aconteceu na França do século dezoito quando “as infantis fábulas gregas”, junto com “o bárbaro Shakespeare e as sórdidas lendas bíblicas” foram todas sumariamente dispensadas como “o trabalho de um esperto sacerdócio determinado a sufocar mentes potencialmente esclarecidas no berço”, por gente como Voltaire. A onda voltou no século dezenove com Nietzsche, que quis recuperar o pensamento mítico pré-cristão e costumava assinar suas cartas “Dionísio”.
Os deuses surfistas vindos do passado assumiam qualquer forma. Escreve Calasso: “Muitas vezes eram reduzidos à mera existência de papel, como alegorias morais, personificações, prosopopéias e outros engenhos do arsenal retórico.” Ou eram “meros pretextos para o lirismo, nada mais do que sons evocativos”. Em qualquer forma, seus anfitriões modernos os mantinham sob controle, eufemismados e disfarçados. Isto nas letras, porque nas artes plásticas houve uma enchente: os deuses heróis tomaram conta e durante quatro séculos foram sujeitos, ou no mínimo coadjuvantes, de toda a pintura e a escultura ocidental. E dê-lhe sátiros e ninfas. Principalmente ninfas. As ninfas trazem na “onda mnemônica” a forma mais antiga e potencialmente mais perigosa de matéria artística, segundo Calasso, que é a obsessão. Homero conta que Apolo, o Caçador Encantado, descobre uma ninfa e uma grande serpente guardando uma vertente de água doce. Tanto a ninfa quanto a serpente são aterradoras, pois o que elas guardam é uma fonte de sabedoria e poder que dará a Apolo o domínio do mistério fluido da vida pela arte, mas em troca o transformará num possuído. Ninfa e serpente são a mesma coisa, a sedução pela arte e a danação do artista na mesma conquista. A correspondência com a “sórdida lenda bíblica” do Paraíso perdido não precisa ser enfatizada.
“Nymphe” em grego quer dizer “menina pronta para o casamento” e também “fonte”. Calasso: “Aproximar-se de uma ninfa é ser apreendido e possuído por alguma coisa, e imergir num elemento ao mesmo tempo terno e instável, que pode ser emocionante mas também pode muito bem ser fatal.” Mas qual era o poder das ninfas, o que eram essas águas mágicas? Há um hino a Apolo que fala do “noeron udaton”, “as águas mentais” que são o presente das ninfas ao deus das artes. Uma vez conquistadas, as ninfas se ofereciam, e a sua oferenda era o “eídolon”, a imagem, o simulacro. Ou seja, a matéria da criação, a literatura. Cada vez que uma ninfa se oferece, evoca este poder que precede a palavra, este manancial de vida que abastece o artista, ou que ele imita, ou no qual se afoga.
Sócrates se descrevia como um “nymphóleptos”, alguém “capturado pelas ninfas”. O mais notório “nymphóleptos” da literatura moderna é Humbert Humbert, o professor pedófilo da tragicomédia de Vladimir Nabokov, “Lolita”. O desafortunado Humbert Humbert é um “caçador encantado” que persegue a sua ninfeta até possuí-la (num motel chamado “A caçadora encantada”), e dali em diante é possuído por ela. Descrevendo sua emoção ao ver Lolita pela primeira vez no quintal da sua casa, seminua, “numa poça de sol”, Humbert Humbert diz que “uma onda de mar azul” cresceu sob o seu coração. Parte da sua obsessão com a ninfeta é a memória que ela lhe traz de um amor pré-pubescente na beira do Mediterrâneo, a perdida Annabel, que deve o nome que Nabokov lhe deu a Annabel Lee do poema de Edgar Allan Poe. Outro “nymphóleptos”, outro possuído.
Nabokov, que se saiba, não era um pedófilo, portanto seu livro é um genial respingo de “onda mnemônica”, ou um mergulho deliberado nas “águas mentais” de alusões e significados que a onda nos traz, lá de trás. Para Calasso, “a verdade esotérica” de “Lolita” está numa única frase de Humbert Humbert: “A ciência da nympholepsia é uma ciência precisa.” O que Nabokov não diz é que esta “ciência precisa” é exatamente uma que ele exerceu durante toda a vida. Não a perseguição de ninfetas, mas a perseguição da palavra exata e do mistério que a ordena. Da literatura.
15.2.02
Meu carnaval foi uma droga, fiquei doente e de cama, com gripe e febre. Perdi os churrascos e agitos, mas pelo menos li uns romances policiais. Foi a primeira vez que acertei quem era o assassino numa história de Agatha Christie, "A Extravagância do Morto". Eu disse o assassino, porque a história rocambolesca que o acompanhava, narrada pelo infalível pentelho belga Hercule Poirot, era impossível de montar.
Ao voltar, tive uma ótima notícia, além de receber novos textos da Crib (veja abaixo): minha série favorita de historietas on-line, a deliciosa "Encontros e Desencontros", da Alessandra Archer, teve todos os seus capítulos publicados pelo Falaê, aqui. Espero que a Alessandra não pare de escrevê-la, pois muitas vezes, sem saber, ela apaziguou minha angústia perene com seu estilo suavemente letal de escrever.
Ao voltar, tive uma ótima notícia, além de receber novos textos da Crib (veja abaixo): minha série favorita de historietas on-line, a deliciosa "Encontros e Desencontros", da Alessandra Archer, teve todos os seus capítulos publicados pelo Falaê, aqui. Espero que a Alessandra não pare de escrevê-la, pois muitas vezes, sem saber, ela apaziguou minha angústia perene com seu estilo suavemente letal de escrever.
Crib Tanaka e eu fizemos um novo conto. Estou tendo a honra de publicá-lo em primeira mão.
Réquiem para um amor
de André Machado e Crib Tanaka
Ele estava ouvindo ao longe os primeiros acordes de "Highway Star" naquele show orgiástico que o Deep Purple fizera no Japão em 1972. O teclado de Jon Lord suave brincando com as notas, depois o baixo de Roger Glover, a batida impiedosa de Ian Paice e por fim a guitarra ensandecida e sangrando de Ritchie Blackmore, urrando de prazer e antecipação. Tudo no meio de uma nuvem lilás: estava aparentemente sentado à beira de uma ravina em meio ao crepúsculo. Do outro lado, podia ver os longos cabelos castanhos de uma silhueta feminina agitando-se ao toque do vento. Contra o lusco-fusco era impossível enxergar sua face, mas ela estava vestida com a mesma camisola diáfana que dera a Eleonora anos atrás.
Pensou em Eleonora, em como sentia a falta da verdadeira Eleonora há milênios. Ela continuava a seu lado, mas parecia que uma parte sua morrera depois do buquê. Foi no quinto aniversário de casamento. Um mês antes, havia notado que ela estava alegre demais -- havia algo de pura ansiedade na maneira como descrevia seu dia, comentava as notícias, falava dos amigos. Eleonora era dona de um espírito mordaz, tinha um senso de humor quase britânico, sutil. Naquele dia -- estava chovendo, ele recordava - ela parecia uma criança na expectativa de um passeio com o pai que não via há muito tempo. Isto é, até o fim da tarde, quando chegou o mensageiro. Trazia uma dúzia de rosas amarelas. Ela ficou pálida, emudeceu. Jantou com ele à luz de velas, como haviam combinado, mas não pronunciou uma palavra.
Fizeram amor naquela noite, mas ele se arrependeu. Ela não estava ali e ele precisou fingir que gozara para que aquilo acabasse rápido. Foi fumar um cigarro na varanda. Estaria Eleonora tendo um caso? Se fosse isso, não poderia reclamar, já que ele fizera das suas no ano anterior, e não ouvira mais que uma elegante frase de efeito dos lábios dela. Tudo continuara bem, o "affair" terminara, e ele disfarçadamente procurou compensar sua falta com presentes, viagens, pequenos agrados diários. E agora, aquelas rosas... De quem seriam? Não viera cartão nenhum, ele mesmo abrira a porta para o mensageiro.
Começou a ventar mais forte na ravina. Ele se desequilibrou e, antes de começar a cair, viu que a mulher de cabelos castanhos sorria, mas não conseguia ver seus olhos.
Acordou ofegante no sofá, diante do qual se enfileiravam garrafas de cerveja na mesina de tampo de vidro. Estava tonto e com uma enxaqueca oriunda diretamente do terceiro círculo do inferno. O "Made in Japan" rodava no aparelho de som, rsk, rsk, rsk.
Então notou as roupas espalhadas pela casa, numa espécie de trilha que ia da porta da sala até o corredor, onde a mala estava atirada a um canto. Eleonora tinha viajado há uma semana, a trabalho, dissera, avisando que retornaria dentro de um mês. Levantou-se e seguiu a trilha, trôpego. Da porta do quarto vinha um cheiro de mato molhado.
Ele entrou e estacou. Uma mulher de cabelos castanhos estava deitada na cama, completamente nua. A seu lado havia um buquê de rosas amarelas. Linhas de um lilás dormente listravam o corpo dela. Ela o olhava com desejo e pavor. Entreabria a boca pedindo um beijo, mas retraía o corpo. Subitamente, figuras de luz começaram a desenhar todo o quarto. O corpo dela passava frieza pelo lilás que vestia, mas eram animalescas as listras que o estampavam. Ela, puro animal arredio na cama.
Sombras azul-turquesa criavam figuras confusas, misturadas, sem fim, que corriam pela parede e pelo teto. Ele se olhava e via as próprias mãos com outra cor. Aquela mulher nua em sua cama lembrou-lhe que Eleonora nunca o olhava nos olhos na hora do sexo.
A curiosidade superara o azul das sombras. Aproximou-se. Caminhava lentamente, tentando enxergar melhor. Via seios e ventre continuarem em grossas coxas macias. Ainda ouvia, ao fundo, "Highway Star". Sentou-se na cama, ao lado do que agora denominava uma visão venusiana. Os cabelos cobriam parte do rosto dela e caíam pelos ombros bem distribuídos entre carne e ossos pontudos e largos. No chão, uma camisola.
Tocou-a na barriga, de onde todos os seres humanos tiram sua força. Sentiu a superfície d’alma, macia e gelada. Subiu a mão e afastou o fino e longo cabelo do rosto. Queria vislumbrar com que cor ela o enxergava. A visão que teve foi perturbadora. Distinguiu nela os olhos de Eleonora, os mesmos olhos castanhos, temerosos, fugitivos. Os olhos de Eleonora brigando com o corpo lilás, listrado, instigante, animalesco, fêmea. Sentia o cheiro de rosas frias. Fechou os olhos e deitou ao seu lado. Acabara de morrer um amor.
O primeiro beijo seguiu a voz de Gillan:
"Nobody gonna take my girl
I'm gonna keep her to the end
Nobody gonna have my girl
She stays close on every bend
Oooh she's a killing machine
She's got everything
Like a moving mouth
body control and everything
I love her
I need her
I seed her
Yeah, she turns me on..."
* * *
Ela podia ouvir claramente os primeiros acordes de "Child in Time" ecoando no fundo de uma ravina. O sol acordava, vermelho. Do outro lado do abismo, um homem nu; não podia ver seu rosto, envolto nas setas quentes da aurora.
Ele estava sorrindo, de algum modo sorria, e ela pôde sentir um beijo, antes de ele se voltar e sumir na aura rósea do sol.
Eleonora despertou e a primeira coisa que ouviu foi o rugido da turbina. A segunda foi a voz gentil e mecânica da aeromoça lhe oferecendo um café.
Réquiem para um amor
de André Machado e Crib Tanaka
Ele estava ouvindo ao longe os primeiros acordes de "Highway Star" naquele show orgiástico que o Deep Purple fizera no Japão em 1972. O teclado de Jon Lord suave brincando com as notas, depois o baixo de Roger Glover, a batida impiedosa de Ian Paice e por fim a guitarra ensandecida e sangrando de Ritchie Blackmore, urrando de prazer e antecipação. Tudo no meio de uma nuvem lilás: estava aparentemente sentado à beira de uma ravina em meio ao crepúsculo. Do outro lado, podia ver os longos cabelos castanhos de uma silhueta feminina agitando-se ao toque do vento. Contra o lusco-fusco era impossível enxergar sua face, mas ela estava vestida com a mesma camisola diáfana que dera a Eleonora anos atrás.
Pensou em Eleonora, em como sentia a falta da verdadeira Eleonora há milênios. Ela continuava a seu lado, mas parecia que uma parte sua morrera depois do buquê. Foi no quinto aniversário de casamento. Um mês antes, havia notado que ela estava alegre demais -- havia algo de pura ansiedade na maneira como descrevia seu dia, comentava as notícias, falava dos amigos. Eleonora era dona de um espírito mordaz, tinha um senso de humor quase britânico, sutil. Naquele dia -- estava chovendo, ele recordava - ela parecia uma criança na expectativa de um passeio com o pai que não via há muito tempo. Isto é, até o fim da tarde, quando chegou o mensageiro. Trazia uma dúzia de rosas amarelas. Ela ficou pálida, emudeceu. Jantou com ele à luz de velas, como haviam combinado, mas não pronunciou uma palavra.
Fizeram amor naquela noite, mas ele se arrependeu. Ela não estava ali e ele precisou fingir que gozara para que aquilo acabasse rápido. Foi fumar um cigarro na varanda. Estaria Eleonora tendo um caso? Se fosse isso, não poderia reclamar, já que ele fizera das suas no ano anterior, e não ouvira mais que uma elegante frase de efeito dos lábios dela. Tudo continuara bem, o "affair" terminara, e ele disfarçadamente procurou compensar sua falta com presentes, viagens, pequenos agrados diários. E agora, aquelas rosas... De quem seriam? Não viera cartão nenhum, ele mesmo abrira a porta para o mensageiro.
Começou a ventar mais forte na ravina. Ele se desequilibrou e, antes de começar a cair, viu que a mulher de cabelos castanhos sorria, mas não conseguia ver seus olhos.
Acordou ofegante no sofá, diante do qual se enfileiravam garrafas de cerveja na mesina de tampo de vidro. Estava tonto e com uma enxaqueca oriunda diretamente do terceiro círculo do inferno. O "Made in Japan" rodava no aparelho de som, rsk, rsk, rsk.
Então notou as roupas espalhadas pela casa, numa espécie de trilha que ia da porta da sala até o corredor, onde a mala estava atirada a um canto. Eleonora tinha viajado há uma semana, a trabalho, dissera, avisando que retornaria dentro de um mês. Levantou-se e seguiu a trilha, trôpego. Da porta do quarto vinha um cheiro de mato molhado.
Ele entrou e estacou. Uma mulher de cabelos castanhos estava deitada na cama, completamente nua. A seu lado havia um buquê de rosas amarelas. Linhas de um lilás dormente listravam o corpo dela. Ela o olhava com desejo e pavor. Entreabria a boca pedindo um beijo, mas retraía o corpo. Subitamente, figuras de luz começaram a desenhar todo o quarto. O corpo dela passava frieza pelo lilás que vestia, mas eram animalescas as listras que o estampavam. Ela, puro animal arredio na cama.
Sombras azul-turquesa criavam figuras confusas, misturadas, sem fim, que corriam pela parede e pelo teto. Ele se olhava e via as próprias mãos com outra cor. Aquela mulher nua em sua cama lembrou-lhe que Eleonora nunca o olhava nos olhos na hora do sexo.
A curiosidade superara o azul das sombras. Aproximou-se. Caminhava lentamente, tentando enxergar melhor. Via seios e ventre continuarem em grossas coxas macias. Ainda ouvia, ao fundo, "Highway Star". Sentou-se na cama, ao lado do que agora denominava uma visão venusiana. Os cabelos cobriam parte do rosto dela e caíam pelos ombros bem distribuídos entre carne e ossos pontudos e largos. No chão, uma camisola.
Tocou-a na barriga, de onde todos os seres humanos tiram sua força. Sentiu a superfície d’alma, macia e gelada. Subiu a mão e afastou o fino e longo cabelo do rosto. Queria vislumbrar com que cor ela o enxergava. A visão que teve foi perturbadora. Distinguiu nela os olhos de Eleonora, os mesmos olhos castanhos, temerosos, fugitivos. Os olhos de Eleonora brigando com o corpo lilás, listrado, instigante, animalesco, fêmea. Sentia o cheiro de rosas frias. Fechou os olhos e deitou ao seu lado. Acabara de morrer um amor.
O primeiro beijo seguiu a voz de Gillan:
"Nobody gonna take my girl
I'm gonna keep her to the end
Nobody gonna have my girl
She stays close on every bend
Oooh she's a killing machine
She's got everything
Like a moving mouth
body control and everything
I love her
I need her
I seed her
Yeah, she turns me on..."
* * *
Ela podia ouvir claramente os primeiros acordes de "Child in Time" ecoando no fundo de uma ravina. O sol acordava, vermelho. Do outro lado do abismo, um homem nu; não podia ver seu rosto, envolto nas setas quentes da aurora.
Ele estava sorrindo, de algum modo sorria, e ela pôde sentir um beijo, antes de ele se voltar e sumir na aura rósea do sol.
Eleonora despertou e a primeira coisa que ouviu foi o rugido da turbina. A segunda foi a voz gentil e mecânica da aeromoça lhe oferecendo um café.
8.2.02
"Somente os amantes" -- Capítulo IV
Otávio respirou fundo e começou:
-- Oscar Wilde foi o homem que me libertou do desprezo pela vida. Não completamente, é claro, pois ainda considero boa parte deste mundo abominável. Ainda assim, prefiro-o a outros mundos, porque sei que nele também mora o prazer, a única razão pela qual quero morrer bem velho. Hei de sorver prazer até meu último minuto. Mas, você deve se perguntar, o que me tornou tão cínico tão jovem? Para começar, meus pais.
"Costumo achar interessantes os cristãos que agem como pecadores; é a prova de que a tentação é superior à redenção. Materialistas, individualistas, perversos, são verdadeiros apóstolos da maldade em cuja boca a hóstia se torna bolorenta em segundos e o vinho se transforma em vinagre rapidamente. No entanto, vão à igreja todos os domingos, nos feriados santos, criam os filhos no pavor do inferno e se comprazem em tolher a liberdade dos outros. São criaturas horrendas, mas fascinantes.
"Por outro lado, não existe nada pior no mundo que um ateu que age como um cristão. E esse é meu pai. Quando comecei a perceber que Deus era uma grande conversa fiada, até sentia uma ponta de orgulho dele, que professava seu ateísmo em estilo grandioso (em parte para implicar com minha mãe). Depois, descobri que ele era um homem muito consciencioso. Tímido, submisso, preferiu viver de salário vida toda e fez uma opção pelos pobres -- dá aula em colégios públicos. Fala mal dos amigos que tiveram a coragem de se libertar de suas vidas mesquinhas. 'No fim da vida, eles pagarão por isso. Não terão uma aposentadoria para protegê-los', afirma, categórico. Fala igualmente mal dos que fizeram mestrado e se tornaram professores universitários 'pedantes'. Sua figura diz aos que o observam: 'eu me contento com o que tenho'.
"E, pasme, ele tem ambição! Tem sonhos confusos e contraditórios... Ama o socialismo tão fervorosamente que defende Stálin. Mas quase baba ante fotos de castelos medievais, descrições de banquetes aristocráticos, tapeçarias orientais. Venera a nobreza. A etiqueta.
"Como vê, eu não tinha outra saída que não adotar uma postura zombeteira.
"Bom, apesar de tudo, adoro meu pai. Ele é um homem derrotado pelo superego, ou pelo menos vejo a coisa mais ou menos assim: o ego aflora em rápidos lampejos em todas as direções -- e é inexoravelmente estraçalhado pela avalanche da consciência. Enfim, hoje conseguimos conversar um pouco mais, e eu até que gosto do lado aristocrático dele. Socialismo, não suporto. É demodê. Além do quê, sou pretensioso demais para ser socialista. Para mim, na verdade, o socialismo é o ópio dos herdeiros ricos e enfastiados."
Marcel riu e admitiu:
-- É, eu jamais poderia imaginar você num levante operário...
-- Deus me livre -- retorquiu Otávio, e, percebendo o que acabara de dizer, tentou inutilmente reprimir um sorriso. Os dois acabaram soltando uma gargalhada.
-- Mas continue -- pediu Marcel, retomando o fôlego.
Otávio respirou fundo e começou:
-- Oscar Wilde foi o homem que me libertou do desprezo pela vida. Não completamente, é claro, pois ainda considero boa parte deste mundo abominável. Ainda assim, prefiro-o a outros mundos, porque sei que nele também mora o prazer, a única razão pela qual quero morrer bem velho. Hei de sorver prazer até meu último minuto. Mas, você deve se perguntar, o que me tornou tão cínico tão jovem? Para começar, meus pais.
"Costumo achar interessantes os cristãos que agem como pecadores; é a prova de que a tentação é superior à redenção. Materialistas, individualistas, perversos, são verdadeiros apóstolos da maldade em cuja boca a hóstia se torna bolorenta em segundos e o vinho se transforma em vinagre rapidamente. No entanto, vão à igreja todos os domingos, nos feriados santos, criam os filhos no pavor do inferno e se comprazem em tolher a liberdade dos outros. São criaturas horrendas, mas fascinantes.
"Por outro lado, não existe nada pior no mundo que um ateu que age como um cristão. E esse é meu pai. Quando comecei a perceber que Deus era uma grande conversa fiada, até sentia uma ponta de orgulho dele, que professava seu ateísmo em estilo grandioso (em parte para implicar com minha mãe). Depois, descobri que ele era um homem muito consciencioso. Tímido, submisso, preferiu viver de salário vida toda e fez uma opção pelos pobres -- dá aula em colégios públicos. Fala mal dos amigos que tiveram a coragem de se libertar de suas vidas mesquinhas. 'No fim da vida, eles pagarão por isso. Não terão uma aposentadoria para protegê-los', afirma, categórico. Fala igualmente mal dos que fizeram mestrado e se tornaram professores universitários 'pedantes'. Sua figura diz aos que o observam: 'eu me contento com o que tenho'.
"E, pasme, ele tem ambição! Tem sonhos confusos e contraditórios... Ama o socialismo tão fervorosamente que defende Stálin. Mas quase baba ante fotos de castelos medievais, descrições de banquetes aristocráticos, tapeçarias orientais. Venera a nobreza. A etiqueta.
"Como vê, eu não tinha outra saída que não adotar uma postura zombeteira.
"Bom, apesar de tudo, adoro meu pai. Ele é um homem derrotado pelo superego, ou pelo menos vejo a coisa mais ou menos assim: o ego aflora em rápidos lampejos em todas as direções -- e é inexoravelmente estraçalhado pela avalanche da consciência. Enfim, hoje conseguimos conversar um pouco mais, e eu até que gosto do lado aristocrático dele. Socialismo, não suporto. É demodê. Além do quê, sou pretensioso demais para ser socialista. Para mim, na verdade, o socialismo é o ópio dos herdeiros ricos e enfastiados."
Marcel riu e admitiu:
-- É, eu jamais poderia imaginar você num levante operário...
-- Deus me livre -- retorquiu Otávio, e, percebendo o que acabara de dizer, tentou inutilmente reprimir um sorriso. Os dois acabaram soltando uma gargalhada.
-- Mas continue -- pediu Marcel, retomando o fôlego.
7.2.02
I was born under a bad sign,
Left out in the cold
I'm a lonely man who knows
Just what it means to lose control
But, I took all the heartache
And turned it to shame,
Now I'm moving, moving on,
And I ain't taking the blame
Don't come running to me,
I know I've done all I can
A hard loving woman like you
Just makes a hard loving man
So I can say it to you, babe
I'll be a fool for your loving no more,
A fool for your loving no more
I'm so tired of trying, I always end up crying,
Fool for your loving no more
I'll be a fool for your loving no more
I'm tired of hiding my feelings,
You left me lonely too long
I gave my heart, and you tore it apart,
Oh, baby, you done me wrong
Don't come running to me,
I know I've done all I can
A hard loving woman like you
Just makes a hard loving man
So I can say it to you, babe
I'll be a fool for your loving no more,
A fool for your loving no more
I'm so tired of trying, I always end up crying,
Fool for your loving no more
I'll be a fool for your loving no more
("Fool for your loving", Whitesnake, do "Ready an' Willing", 1980)
Left out in the cold
I'm a lonely man who knows
Just what it means to lose control
But, I took all the heartache
And turned it to shame,
Now I'm moving, moving on,
And I ain't taking the blame
Don't come running to me,
I know I've done all I can
A hard loving woman like you
Just makes a hard loving man
So I can say it to you, babe
I'll be a fool for your loving no more,
A fool for your loving no more
I'm so tired of trying, I always end up crying,
Fool for your loving no more
I'll be a fool for your loving no more
I'm tired of hiding my feelings,
You left me lonely too long
I gave my heart, and you tore it apart,
Oh, baby, you done me wrong
Don't come running to me,
I know I've done all I can
A hard loving woman like you
Just makes a hard loving man
So I can say it to you, babe
I'll be a fool for your loving no more,
A fool for your loving no more
I'm so tired of trying, I always end up crying,
Fool for your loving no more
I'll be a fool for your loving no more
("Fool for your loving", Whitesnake, do "Ready an' Willing", 1980)
6.2.02
5.2.02
Divertidíssimos trechos de recente coluna de Eugênio Bucci no JB, sobre o adultério:
"De onde vem essa obsessão da nossa cultura pelas infidelidades da carne? (...) O adultério, especialmente a mulher adúltera, é um tema neurótico da modernidade, de madame Bovary a Capitu. Mas por quê? Talvez porque ele traga à tona o campo da mentira íntima como uma camada de proteção à liberdade individual, e isso é finamente moderno.
(...)
O amor de juras que se cumprem ao longo de toda a vida é um amor medieval. É o amor que só começa no fim da historinha da gata borralheira, só acontece quando a aventura acaba. Aos olhos da utopia moderna, esse amor é bobo. Há também o amor dos folhetins, mais século XIX, com a cidade industrial servindo de fundo para um beijo no happy end, mas esse, quase moderno, é popularesco. O amor romântico é deserotizado, é meio sacristão. Não pegou o melhor da modernidade, que é a insurreição do recalcado, seja esse recalcado o operário ou o desejo. O amor só é moderno quando mata esses pactos de juras eternas e essas idealizações folhetinescas. O que nos leva a uma conclusão constrangedora: a única modernidade possível no amor é o adultério. O amor moderno é o amor adúltero. Vai ver que vem daí a obsessão.
E tome ironia: o indivíduo só se realiza eroticamente como um adulto quando trai no amor. E tome ambigüidade: o adultério é a emancipação e ao mesmo tempo é a danação. É a liberdade que não se resolve, que fica em aberto, que não tem forma de disciplina, de lei ou de regra, que não faz sentido moral - só estético. Por isso não há uma ética para o adultério - há, porém, uma etiqueta."
"De onde vem essa obsessão da nossa cultura pelas infidelidades da carne? (...) O adultério, especialmente a mulher adúltera, é um tema neurótico da modernidade, de madame Bovary a Capitu. Mas por quê? Talvez porque ele traga à tona o campo da mentira íntima como uma camada de proteção à liberdade individual, e isso é finamente moderno.
(...)
O amor de juras que se cumprem ao longo de toda a vida é um amor medieval. É o amor que só começa no fim da historinha da gata borralheira, só acontece quando a aventura acaba. Aos olhos da utopia moderna, esse amor é bobo. Há também o amor dos folhetins, mais século XIX, com a cidade industrial servindo de fundo para um beijo no happy end, mas esse, quase moderno, é popularesco. O amor romântico é deserotizado, é meio sacristão. Não pegou o melhor da modernidade, que é a insurreição do recalcado, seja esse recalcado o operário ou o desejo. O amor só é moderno quando mata esses pactos de juras eternas e essas idealizações folhetinescas. O que nos leva a uma conclusão constrangedora: a única modernidade possível no amor é o adultério. O amor moderno é o amor adúltero. Vai ver que vem daí a obsessão.
E tome ironia: o indivíduo só se realiza eroticamente como um adulto quando trai no amor. E tome ambigüidade: o adultério é a emancipação e ao mesmo tempo é a danação. É a liberdade que não se resolve, que fica em aberto, que não tem forma de disciplina, de lei ou de regra, que não faz sentido moral - só estético. Por isso não há uma ética para o adultério - há, porém, uma etiqueta."
3.2.02
Cena antológica de Ringo Starr em "A hard day's night" (ele foi uma das melhores coisas do filme. Aliás, no documentário sobre a turnê da banda aos EUA em 64, também parece mais divertido do que os outros. Quando, na entrevista coletiva, perguntam aos Fab Four se eles são apenas imitadores de Elvis, é Ringo quem grita "That's a lie!!!!" ao mesmo tempo que dança como o Rei ;-))))
REPÓRTER -- Afinal, você é um "modder" ou um "rocker"?
RINGO -- Eu sou um "mocker".
REPÓRTER -- Afinal, você é um "modder" ou um "rocker"?
RINGO -- Eu sou um "mocker".
2.2.02
É com grande satisfação que noticio a chegada do Alexandre Mandarino ao mundo dos blogs. Seu Harper's Bizarre já nasceu um clássico!!!! Mandarino tem um dos melhores textos que conheço e devia estar brilhando numa redação, como merece.
1.2.02
Do genial Lima Barreto, em "Recordações do escrivão Isaías Caminha", meu livro preferido do autor. Vejam bem: é de 1909.
"Cheguei às oito horas à redação. Floc, de casaca, dava o último retoque na tradução do folhetim. Ia ao Lírico. Estava cercado de dicionários e exalava perfumes. Em breve saiu e a redação a pouco e pouco se esvaziou. Pela meia-noite estava só o redator de plantão; o repórter de serviço tinha adoecido e os outros, à míngua de novidades, tinham desaparecido pelos cafés e cervejarias. Pouco depois da meia-noite, Floc voltou. Vinha alegre. A sua fisionomia irradiava satisfação e no seu olhar bailavam coisas fugidias e doces.
(...)
Floc pusera-se à mesa em atitude de escrever. Levei-lhe papel e tinta, e o critico, preparada vagarosamente a caneta, arrumado o papel, acendeu um charuto e ficou por instantes abismado numa grande cisma sem fim... Tinha medo de começar. Tinha visto tanta coisa bela, tanta carne moça e boa, que ele queria lançar o artigo como um remígio para o alto, para as distantes regiões da arte e da beleza, não perdendo uma só idéia fugidia, transmitindo as emoções sentidas naquelas deliciosas horas em que contemplou as mais belas e caras mulheres da cidade, ouvindo aquela música lânguida de Itália cheia de sol, de história e de amor. Como que senti que ele tentava pôr na sua crônica um pouco dos sonhos sonhados à vista daqueles colos nus e tratados, daqueles olhares faiscantes, e também a sensação quase irregistrável da música, o roçagar das sedas, a olência dos perfumes a pairar naquele ambiente fechado, uma impressão a tocar outra, bailando sem serem vistas nos ares polvilhados de luz, da luz azul da eletricidade. Eram todos os sentidos que tinham vivido: a sensação particular de um provocando sensações aos outros e todas elas sacolejando a sua personalidade com aquele hercúleo esforço para colhê-las todas. Pensava...
Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever, emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes, não gostou, rasgou...
Recomeçou... A sua fisionomia estava transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os olhos estavam fixos e a boca, cerrada nervosamente, custava a abrir-se para aspirar rapidamente o charuto. Toda a sua fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou:
— Caminha! Vai buscar aí cachaça! Anda!
Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma, prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador, tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole. Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumava agora um cigarro sobre outro; não ia até o fim, atirava-o em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela, debruçou-se e o paginador voltou:
— "Seu" Couto!
— Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?...
Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a resistir. Depois de vinte minutos, o paginador voltou:
— Espere um pouco, disse o crítico.
O operário saiu. Floc esteve um instante com a cabeça entre as mãos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o lado estava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e às ambições."
"Cheguei às oito horas à redação. Floc, de casaca, dava o último retoque na tradução do folhetim. Ia ao Lírico. Estava cercado de dicionários e exalava perfumes. Em breve saiu e a redação a pouco e pouco se esvaziou. Pela meia-noite estava só o redator de plantão; o repórter de serviço tinha adoecido e os outros, à míngua de novidades, tinham desaparecido pelos cafés e cervejarias. Pouco depois da meia-noite, Floc voltou. Vinha alegre. A sua fisionomia irradiava satisfação e no seu olhar bailavam coisas fugidias e doces.
(...)
Floc pusera-se à mesa em atitude de escrever. Levei-lhe papel e tinta, e o critico, preparada vagarosamente a caneta, arrumado o papel, acendeu um charuto e ficou por instantes abismado numa grande cisma sem fim... Tinha medo de começar. Tinha visto tanta coisa bela, tanta carne moça e boa, que ele queria lançar o artigo como um remígio para o alto, para as distantes regiões da arte e da beleza, não perdendo uma só idéia fugidia, transmitindo as emoções sentidas naquelas deliciosas horas em que contemplou as mais belas e caras mulheres da cidade, ouvindo aquela música lânguida de Itália cheia de sol, de história e de amor. Como que senti que ele tentava pôr na sua crônica um pouco dos sonhos sonhados à vista daqueles colos nus e tratados, daqueles olhares faiscantes, e também a sensação quase irregistrável da música, o roçagar das sedas, a olência dos perfumes a pairar naquele ambiente fechado, uma impressão a tocar outra, bailando sem serem vistas nos ares polvilhados de luz, da luz azul da eletricidade. Eram todos os sentidos que tinham vivido: a sensação particular de um provocando sensações aos outros e todas elas sacolejando a sua personalidade com aquele hercúleo esforço para colhê-las todas. Pensava...
Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever, emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes, não gostou, rasgou...
Recomeçou... A sua fisionomia estava transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os olhos estavam fixos e a boca, cerrada nervosamente, custava a abrir-se para aspirar rapidamente o charuto. Toda a sua fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou:
— Caminha! Vai buscar aí cachaça! Anda!
Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma, prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador, tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole. Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumava agora um cigarro sobre outro; não ia até o fim, atirava-o em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela, debruçou-se e o paginador voltou:
— "Seu" Couto!
— Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?...
Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a resistir. Depois de vinte minutos, o paginador voltou:
— Espere um pouco, disse o crítico.
O operário saiu. Floc esteve um instante com a cabeça entre as mãos, parado, tragicamente silencioso; depois, levantou-se firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu. Havia um filete de sangue no ouvido e os olhos semicerrados tinham uma longa e doce expressão de sofrimento e perdão. Caído para o lado estava o revólver, muito claro e brilhante na sua niquelagem, estupidamente indiferente aos destinos e às ambições."
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