17.6.02

Tarde de estréia

Uma de minhas inspirações para os "Minicontos do Desconforto" que rabisco aqui foi a série "Encontros e Desencontros", de Alessandra Archer, cujos textos adoro (já insisti com ela para que publicasse alguns de seus escritos mais pessoais e abissais, mas Alessandra é tímida por natureza. Algum dia, quem sabe...). Por isso estou felicíssimo de publicar neste Cadafalso, em primeira mão, nosso conto em dupla número 1. Espero que seja apenas o começo de uma parceria fecunda.

O doce colorido

André Machado e Alessandra Archer

Tinha nove anos e foi com os pais visitar a madrinha, severa médica numa recém-criada colônia para aqueles que vivem numa realidade diferente da nossa, e que alguns preferem chamar de loucos. Na sua visão de criança, achou o lugar, ainda em construção, enorme. Passeou por toda a sua extensão, mas, estranhamente, não viu ninguém no pátio. Tudo estava silencioso.

Depois do almoço, enquanto os adultos fumavam num espaço reservado, pediu para ir à lanchonete azul que vira no pátio para comprar um doce colorido. A mãe deu-lhe algumas moedas e ele saiu correndo antes que o avistassem.

Chegou ao espaço aberto e todos os loucos estavam lá, reunidos, em seus pijamas esbranquiçados. Devia ser hora do exercício diário, ou algo assim. Alguns andavam para lá e para cá, outros olharam para ele interrogativamente. De repente, um cão surgiu do meio do nada, latindo ferozmente, correndo em sua direção. Apavorado, não conseguiu sair do lugar.

Foi quando um dos internos saiu de sua aparente apatia e chamou o cão. Balançando o rabo, o animal voltou e seguiu o homem, que andava devagar. Mas o menino continuava paralisado.

Não sabia qual deveria ser seu próximo movimento. Retroceder para a segurança e normalidade do ambiente enfumaçado de seus pais ou prosseguir, rumo ao desejo de comer um doce colorido, ameaçado por um cão e por pessoas estranhas. "Estou tão perto da lanchonete", pensou. Sem desdém ou covardia diante de seus anseios, seguiu impávido, observando todos os detalhes do pátio amplo. Passos apressados, olhar firme, quase não se reconhecia.

"Quero aquele doce ali", apontou, rígido. A moça embrulhou-o, sem sorrisos para crianças, que ali não era lugar para elas. Pacote na mão, viu-se outra vez sem ação. Onde suprir sua alegria infantil longe dos olhares tristonhos e distantes que o cercavam?

À direita do estacionamento havia uma área erma, uma pequena quadra de esportes de terra batida, cercada de árvores, e para lá o menino se encaminhou, contendo o êxtase. Sentou-se numa mureta e antes de desembrulhar o doce passou a vista ao redor. Ninguém. Abriu o pacote, mas alguém apareceu de repente sentando-se ao seu lado com olhar de soslaio e riso apertado, dizendo "quero uma bala". Sentiu medo, como se estivesse cara a cara com o cão feroz que para ele latira há pouco. "Mãe", palavra curta, idéia clara, fechada e única no redemoinho de invencionices de um garoto; "pai", imagem forte, ajustada, certeira, de um pensamento simplista, quase uma prece, de um menino assustado por natureza.

As mãos pequenas estenderam-se, obedientes, para as mãos sujas do alguém que pedira uma bala. Mas o braço vacilou indefeso diante da afronta da não-realização de seu querer, e as balas azuis, amarelas, vermelhas, verdes e laranja caíram, misturando-se à areia. "O que não mata engorda" foi a frase dita pelo alguém que catou um a um os doces, soprando-os e engolindo-os.

O menino já estava longe, correndo contra o tempo, pois sabia que haveria ainda para si lanchonetes abertas a vender-lhe novos doces e um ambiente severo e fumacento onde poderia suprir sua carência de distanciar-se de um mundo desconhecido.

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