19.6.02

Minicontos do desconforto -- 22

Percebeu que ainda gostava dele quando o viu beijar na boca a velha amiga, bem na sua frente. Tinha orgulho de tê-lo esquecido, de ter virado mais uma página em sua vida depois de sofrer desesperadamente por se saber não correspondida. O pior é que, quando aconteceu, tinha largado o vício da paixão há mais de dez anos. Nunca mais tomara um só copo de tal elixir e agradecia a Deus por cada manhã sóbria.

E agora... agora não conseguia desviar os olhos dos beijos que se repetiam. "Pára!", gritou para sua alma. Ela fez ouvidos moucos.

Resolveu ir embora. Ele pediu que não fosse, disse que planejava regressar com ela. Disse-o com a costumeira nonchalance, ao mesmo tempo em que acariciava o pescoço da amiga.

Ela abriu a boca para responder, quando foi interrompida por mais um beijo. A amiga foi mais sedutora desta vez. Aí não deu. Começou a chorar. Fraquejou. Apoiou-se na pilastra mais próxima. Ele se levantou, tentou ampará-la, ela deu-lhe um safanão. Chorou mais e mais, até perceber que não estava conseguindo ficar de pé. Olhou para baixo e... já não tinha mais pés. As lágrimas haviam formado uma parede líquida que a consumia de baixo para cima. O que só a fez chorar ainda mais.

Mais tarde, na delegacia, dando-a como desaparecida, o atônito casal de amigos também chorou. Os dois jamais souberam que haviam presenciado um milagre: uma mulher se transmutando numa poça de tristeza.

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