De vodca, tequila, sonhos e desilusões amorosas (ou: o portão)
André Machado e Crib Tanaka
Sempre sonhava que estava voando. Começava a caminhar pela pracinha a dois quarteirões e, antes de chegar à estátua no centro, decolava, passando por cima das copas das árvores. Devia existir mesmo esse negócio de projeção astral, pensava, porque toda vez que o sonho acabava ela acordava, suada, com um solavanco ou tremedeira involuntária. E ficava sempre com saudade do vôo, mas quando voltava a dormir as histórias oníricas eram outras.
Um dia bebeu demais. Vodca primeiro, com laranja, e depois tequila com sal e limão. Não podia dar boa coisa. Já foi dormir com a dor de cabeça apontando no fundo do crânio. Gemeu, antecipando a ressaca. Mas o sono veio rápido como uma bigorna na cabeça.
Estava na praça de novo. O ar tinha, desta vez, uma estranha qualidade de gelatina. Até cheiro de gelatina havia. Deu dois passos e flutuou. Logo estava no céu riscado de nuvens, os braços abertos, a camisola brilhante recebendo por dentro gostosas correntes de ar gelado. "Se eu continuar com esse sonho acordo sem aquele gosto de guarda-chuva na boca", riu.
O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu.
Lentamente, foi sendo levada até ele. A sensação era a mesma do pós-três doses de vodca. A camisola bateu no laranja do corroído metal e um pedaço do tecido se enganchou no grande portão de ferro. "Deixa, deixa", disse a si mesma, com voz lenta. Não percebera de imediato, mas por um bom tempo ficou parada, presa ao portão, com os pés buscando direção num bobo movimento aliado ao das longas mãos.
Acordou ofegante, assustando Runi, seu gato.
Levantou-se para tomar um copo d'água. Runi se confundia com a escuridão, enroscava-se em suas pernas, querendo brincar. Ela andava com passos-gato, tateando o gelado das paredes, protegendo-se das quinas das portas. Abriu a geladeira e a luz amarelada deu forma a todos os móveis da cozinha.
Sentou-se um pouco, de frente para a janela, perto do varal. Olhava o céu, enquanto tomava sua água e se deixava acalmar. Lua minguante, sensação de inacabado, melancolia, solidão. Ela estava só.
Naquele dia tinha saído para tentar curar-se de uma dor. Pontada fina de faca-homem a havia atingido no ventre. Sabia que estava sendo deixada quando ele a beijara daquela maneira. Lágrimas correram pela boca. Saliva salgada de mar. E vermelhidão de desejo não consumado. Não disseram nada. Apenas um beijo e estava só.
Continuou sentada no balcão do pub irlandês. Impressionava-se com a alegância das pessoas no frio. Lado positivo da negatividade dos graus. Ela agora olhava-se no espelho e era impossível não deixar escapar um leve sorriso. Sentia-se linda com seu casaco 7/8 de veludo preto, com suas botas de couro até o joelho. A pele branca, porcelana sem rachaduras, não era invadida por água, nem óleo. Os cabelos curtos, ondulados, de cor indefinida -- meio louros, meio castanhos -- estavam milimetricamente penteados e sustentavam o rosto de menina da década de 20. Acendeu um cigarro e riu com a imagem melindrosa que tinha. A boca-coração rósea, o corpo esguio, os olhos de cílios longos. Por um momento divertiu-se com todos esse adjetivos que via no espelho. Lembrou-se do beijo.
Mais uma tequila, por favor. O garçom enxugava os copos e duvidava da sobriedade daquela mulher. Pensou em convencê-la a não mais beber, mas seria dinheiro a menos que ganharia. E gostava de admirar uma mulher bonita e bêbada. A mistura -- como a de alguns coquetéis -- era frágil e poderosa ao mesmo tempo.
A melindrosa foi embora quando conferiu que seu dinheiro acabara. Ao seu lado, somente um senhor de cabelos brancos que desde o começo da noite olhava para um ponto fixo, enquanto tragava um cigarro de filtro amarelo. Desceu as escadas do pub apoiando-se no gelado corrimão de madeira. Os saltos finos sustentavam pouco de sua alma. Seu corpo precisava de apoio maior que os próprios pés. Mesmo assim, foi andando para casa. Pelo menos não tinha frio: o organismo estava quente. Vodca e tequila circulavam nela.
Demorou para achar as chaves da porta principal. Caminhou até o quarto. Esquecera a calefação ligada. Sentiu calor. Na pia do banheiro, lavou o rosto, as mãos. A imagem borrada no espelho contrastava com a que vira no bar. Tirou os brincos e deu por falta de um anel. Jogou a roupa no chão e vestiu uma camisola branca, feita de algodão e renda, de mangas compridas.
Estava agitada. Assim que entrou no limiar do sono, pôde sentir que lágrimas molhavam o travesseiro e escorriam pelo rosto, pescoço, seios. Sentia-se afogada nele. Até que um vento secou-lhe a roupa. E o corpo. Ventava, mas não fazia frio. O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu. Abriu-o com chaves que estavam num colar que carregava. No começo, a imagem disforme com a qual deparou-se pertubou-a. Sentia que para vê-la com nitidez precisaria de tempo. Sentou-se então num sofá vermelho, confortável. E dele tentava vislumbrar... o quê?
"Aceita um cigarro, mademoiselle?" A pergunta vinha de um homem novo, moreno, de terno. Era um homem da década de 50. "Sim, obrigada". "O que está olhando?", perguntou ele, acendendo o cigarro dela. "Estou tentando ver o que está ali", respondeu. "Curioso, curioso... Tenho que ir. Bonjour", retrucou ele, e afastou-se, atravessando o portão.
Ela fumava e olhava para a imagem que permanecia parada à sua frente. Agora podia ver melhor o contorno da boca. Acreditava ser uma mulher. Não tinha certeza. Pouco depois, reconheceu os olhos. Eram do homem que a apunhalara em suas forças. As mãos longilíneas, o corpo largo. Sentia o cheiro do perfume que saía de seu pescoço. Não gostava de perfumes, mas ele sempre se perfumava antes de encontros com ela. No indicador da mão esqueda, percebeu o anel que perdera no pub irlandês. Os pés calçados em sapatos de couro italiano. A camisa branca de seda, comprada na Índia. Sempre fora um homem que só vestia grandes grifes. Os cabelos num tom castanho-escuro. Os olhos de quem não sente.
Era ele. Nariz largo, pele morena. Quando tudo tomou forma, olhou mais uma vez para a boca. A boca não era a dele. A boca que via era feminina. Aquela boca era a sua boca, sua boca rósea, sua boca-melindrosa, sua boca pequena de mulher. Ele a engolira. E agora ela não mais acordaria.
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