28.6.02
Adeus, John "The Bovine" Entwistle. Puxa vida, o que o Who vai fazer agora sem a melhor cozinha (baixo + batera) do rock? Pelo menos você e o Keith Moon vão poder se juntar à "Dead Band" aí no céu e fazer grandes jams com Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, John Lennon e George Harrison.
Aqui embaixo, o jeito vai ser criar os "Wheatles", já que dos Beatles sobraram Ringo (batera) e Paul (baixo) e do Who ficaram Townshend (guitarra) e Daltrey (voz). Acho que pode dar um misto interessante...
Aqui embaixo, o jeito vai ser criar os "Wheatles", já que dos Beatles sobraram Ringo (batera) e Paul (baixo) e do Who ficaram Townshend (guitarra) e Daltrey (voz). Acho que pode dar um misto interessante...
27.6.02
26.6.02
Brasil e Alemanha, domingo. O primeiro jogo dos dois numa Copa, e ainda mais na final. Vai ser um duelo de gigantes. Melhor a gente se preparar bem, com muita meditação -- e consultando um dicionário alternativo de termos chulos em alemão para xingar melhor o time deles ;-))
25.6.02
Por aqui vivemos a pretensa instabilidade dos mercados, essa cria maldita da teoria do caos, que faz com que uma mosca tsé-tsé em Timbuctu abale as hienas de Wall Street. E o dinheiro sempre nas mãos dos mesmos. O pior de tudo é saber que os juros altos já vêm de quase quatrocentos anos. Basta ler um trecho do impagável Gregório de Matos (1633-1696):
"O Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento:
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se Ihe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei."
"O Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento:
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se Ihe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei."
24.6.02
A Cora escreveu sobre o encontro do Karl Popper com o Wittgenstein lá no InternETC, e eu me lembrei de outras histórias. O Wilde tem várias. Uma das mais gostosas aconteceu na noite de 20 de fevereiro de 1892, num dos intervalos da estréia da comédia dramática "O leque de lady Windermere". Estava Wilde no bar quando chegou o jovem poeta Richard Le Gallienne, que acabara de publicar "A religião do homem literário". O gigantesco escritor irlandês logo se dirigiu a ele:
-- Richard, meu querido, muitíssimo interessante seu novo livro... Se bem que você foi extremamente injusto comigo nele.
Le Gallienne foi apanhado de surpresa.
-- Injusto, Oscar? Realmente? -- atalhou, sem graça.
-- Sim, por demais injusto -- continuou o outro.
-- Mas... Oscar... -- volveu o poeta -- eu sequer me lembro de tê-lo citado no livro...
-- Foi precisamente isto -- rebateu Wilde, rindo junto com os demais.
-- Richard, meu querido, muitíssimo interessante seu novo livro... Se bem que você foi extremamente injusto comigo nele.
Le Gallienne foi apanhado de surpresa.
-- Injusto, Oscar? Realmente? -- atalhou, sem graça.
-- Sim, por demais injusto -- continuou o outro.
-- Mas... Oscar... -- volveu o poeta -- eu sequer me lembro de tê-lo citado no livro...
-- Foi precisamente isto -- rebateu Wilde, rindo junto com os demais.
21.6.02
Minicontos do desconforto -- 23
Os dois duendes trouxeram os pedais para sua guitarra: um overdrive e um flanger. Discretos, puseram-nos entre a bateria e o teclado. Ninguém percebeu -- até o primeiro solo. Tocou como nunca aquela noite. Seus dedos passeavam sobre o braço do instrumento como se fossem parte dele.
Depois do show, viram-no falando sozinho na praia e presumiram erroneamente que estivesse chapado.
No dia seguinte, o baterista ganhou um bumbo que só faltava falar e o tecladista descobriu cinco novos efeitos em seu Roland.
Os dois duendes trouxeram os pedais para sua guitarra: um overdrive e um flanger. Discretos, puseram-nos entre a bateria e o teclado. Ninguém percebeu -- até o primeiro solo. Tocou como nunca aquela noite. Seus dedos passeavam sobre o braço do instrumento como se fossem parte dele.
Depois do show, viram-no falando sozinho na praia e presumiram erroneamente que estivesse chapado.
No dia seguinte, o baterista ganhou um bumbo que só faltava falar e o tecladista descobriu cinco novos efeitos em seu Roland.
20.6.02
Exorciza as nuvens
Todas as nuvens passam --
até as mais ferozes;
é só soprar com força
e não ceder jamais
Tua pena consistente espanará o negror
e quero estar a teu lado
para estilhaçá-lo num sustenido;
Teu riso há de ser inquebrantável
Porque ele expulsou
um demônio do meu coração
e me faz invencível quando estamos juntos
-- é uma espécie de shazam sem anel.
Dá o passo necessário
Ainda que lhe tomem os pés;
Usa o olhar como sabre
Pois é com ele que toureamos as nuvens
com as formas que queremos.
E se ainda assim
a Esperança fizer dengo e beicinho
Eu rogo: chama-me.
Juntos beberemos do barril de Omar
até não haver mais nuvens, nem planetas,
nem sistemas
e só restarem estrelas servis
que chutaremos, às gargalhadas,
no caminho para casa.
Todas as nuvens passam --
até as mais ferozes;
é só soprar com força
e não ceder jamais
Tua pena consistente espanará o negror
e quero estar a teu lado
para estilhaçá-lo num sustenido;
Teu riso há de ser inquebrantável
Porque ele expulsou
um demônio do meu coração
e me faz invencível quando estamos juntos
-- é uma espécie de shazam sem anel.
Dá o passo necessário
Ainda que lhe tomem os pés;
Usa o olhar como sabre
Pois é com ele que toureamos as nuvens
com as formas que queremos.
E se ainda assim
a Esperança fizer dengo e beicinho
Eu rogo: chama-me.
Juntos beberemos do barril de Omar
até não haver mais nuvens, nem planetas,
nem sistemas
e só restarem estrelas servis
que chutaremos, às gargalhadas,
no caminho para casa.
19.6.02
Minicontos do desconforto -- 22
Percebeu que ainda gostava dele quando o viu beijar na boca a velha amiga, bem na sua frente. Tinha orgulho de tê-lo esquecido, de ter virado mais uma página em sua vida depois de sofrer desesperadamente por se saber não correspondida. O pior é que, quando aconteceu, tinha largado o vício da paixão há mais de dez anos. Nunca mais tomara um só copo de tal elixir e agradecia a Deus por cada manhã sóbria.
E agora... agora não conseguia desviar os olhos dos beijos que se repetiam. "Pára!", gritou para sua alma. Ela fez ouvidos moucos.
Resolveu ir embora. Ele pediu que não fosse, disse que planejava regressar com ela. Disse-o com a costumeira nonchalance, ao mesmo tempo em que acariciava o pescoço da amiga.
Ela abriu a boca para responder, quando foi interrompida por mais um beijo. A amiga foi mais sedutora desta vez. Aí não deu. Começou a chorar. Fraquejou. Apoiou-se na pilastra mais próxima. Ele se levantou, tentou ampará-la, ela deu-lhe um safanão. Chorou mais e mais, até perceber que não estava conseguindo ficar de pé. Olhou para baixo e... já não tinha mais pés. As lágrimas haviam formado uma parede líquida que a consumia de baixo para cima. O que só a fez chorar ainda mais.
Mais tarde, na delegacia, dando-a como desaparecida, o atônito casal de amigos também chorou. Os dois jamais souberam que haviam presenciado um milagre: uma mulher se transmutando numa poça de tristeza.
Percebeu que ainda gostava dele quando o viu beijar na boca a velha amiga, bem na sua frente. Tinha orgulho de tê-lo esquecido, de ter virado mais uma página em sua vida depois de sofrer desesperadamente por se saber não correspondida. O pior é que, quando aconteceu, tinha largado o vício da paixão há mais de dez anos. Nunca mais tomara um só copo de tal elixir e agradecia a Deus por cada manhã sóbria.
E agora... agora não conseguia desviar os olhos dos beijos que se repetiam. "Pára!", gritou para sua alma. Ela fez ouvidos moucos.
Resolveu ir embora. Ele pediu que não fosse, disse que planejava regressar com ela. Disse-o com a costumeira nonchalance, ao mesmo tempo em que acariciava o pescoço da amiga.
Ela abriu a boca para responder, quando foi interrompida por mais um beijo. A amiga foi mais sedutora desta vez. Aí não deu. Começou a chorar. Fraquejou. Apoiou-se na pilastra mais próxima. Ele se levantou, tentou ampará-la, ela deu-lhe um safanão. Chorou mais e mais, até perceber que não estava conseguindo ficar de pé. Olhou para baixo e... já não tinha mais pés. As lágrimas haviam formado uma parede líquida que a consumia de baixo para cima. O que só a fez chorar ainda mais.
Mais tarde, na delegacia, dando-a como desaparecida, o atônito casal de amigos também chorou. Os dois jamais souberam que haviam presenciado um milagre: uma mulher se transmutando numa poça de tristeza.
17.6.02
Tarde de estréia
Uma de minhas inspirações para os "Minicontos do Desconforto" que rabisco aqui foi a série "Encontros e Desencontros", de Alessandra Archer, cujos textos adoro (já insisti com ela para que publicasse alguns de seus escritos mais pessoais e abissais, mas Alessandra é tímida por natureza. Algum dia, quem sabe...). Por isso estou felicíssimo de publicar neste Cadafalso, em primeira mão, nosso conto em dupla número 1. Espero que seja apenas o começo de uma parceria fecunda.
O doce colorido
André Machado e Alessandra Archer
Tinha nove anos e foi com os pais visitar a madrinha, severa médica numa recém-criada colônia para aqueles que vivem numa realidade diferente da nossa, e que alguns preferem chamar de loucos. Na sua visão de criança, achou o lugar, ainda em construção, enorme. Passeou por toda a sua extensão, mas, estranhamente, não viu ninguém no pátio. Tudo estava silencioso.
Depois do almoço, enquanto os adultos fumavam num espaço reservado, pediu para ir à lanchonete azul que vira no pátio para comprar um doce colorido. A mãe deu-lhe algumas moedas e ele saiu correndo antes que o avistassem.
Chegou ao espaço aberto e todos os loucos estavam lá, reunidos, em seus pijamas esbranquiçados. Devia ser hora do exercício diário, ou algo assim. Alguns andavam para lá e para cá, outros olharam para ele interrogativamente. De repente, um cão surgiu do meio do nada, latindo ferozmente, correndo em sua direção. Apavorado, não conseguiu sair do lugar.
Foi quando um dos internos saiu de sua aparente apatia e chamou o cão. Balançando o rabo, o animal voltou e seguiu o homem, que andava devagar. Mas o menino continuava paralisado.
Não sabia qual deveria ser seu próximo movimento. Retroceder para a segurança e normalidade do ambiente enfumaçado de seus pais ou prosseguir, rumo ao desejo de comer um doce colorido, ameaçado por um cão e por pessoas estranhas. "Estou tão perto da lanchonete", pensou. Sem desdém ou covardia diante de seus anseios, seguiu impávido, observando todos os detalhes do pátio amplo. Passos apressados, olhar firme, quase não se reconhecia.
"Quero aquele doce ali", apontou, rígido. A moça embrulhou-o, sem sorrisos para crianças, que ali não era lugar para elas. Pacote na mão, viu-se outra vez sem ação. Onde suprir sua alegria infantil longe dos olhares tristonhos e distantes que o cercavam?
À direita do estacionamento havia uma área erma, uma pequena quadra de esportes de terra batida, cercada de árvores, e para lá o menino se encaminhou, contendo o êxtase. Sentou-se numa mureta e antes de desembrulhar o doce passou a vista ao redor. Ninguém. Abriu o pacote, mas alguém apareceu de repente sentando-se ao seu lado com olhar de soslaio e riso apertado, dizendo "quero uma bala". Sentiu medo, como se estivesse cara a cara com o cão feroz que para ele latira há pouco. "Mãe", palavra curta, idéia clara, fechada e única no redemoinho de invencionices de um garoto; "pai", imagem forte, ajustada, certeira, de um pensamento simplista, quase uma prece, de um menino assustado por natureza.
As mãos pequenas estenderam-se, obedientes, para as mãos sujas do alguém que pedira uma bala. Mas o braço vacilou indefeso diante da afronta da não-realização de seu querer, e as balas azuis, amarelas, vermelhas, verdes e laranja caíram, misturando-se à areia. "O que não mata engorda" foi a frase dita pelo alguém que catou um a um os doces, soprando-os e engolindo-os.
O menino já estava longe, correndo contra o tempo, pois sabia que haveria ainda para si lanchonetes abertas a vender-lhe novos doces e um ambiente severo e fumacento onde poderia suprir sua carência de distanciar-se de um mundo desconhecido.
Uma de minhas inspirações para os "Minicontos do Desconforto" que rabisco aqui foi a série "Encontros e Desencontros", de Alessandra Archer, cujos textos adoro (já insisti com ela para que publicasse alguns de seus escritos mais pessoais e abissais, mas Alessandra é tímida por natureza. Algum dia, quem sabe...). Por isso estou felicíssimo de publicar neste Cadafalso, em primeira mão, nosso conto em dupla número 1. Espero que seja apenas o começo de uma parceria fecunda.
O doce colorido
André Machado e Alessandra Archer
Tinha nove anos e foi com os pais visitar a madrinha, severa médica numa recém-criada colônia para aqueles que vivem numa realidade diferente da nossa, e que alguns preferem chamar de loucos. Na sua visão de criança, achou o lugar, ainda em construção, enorme. Passeou por toda a sua extensão, mas, estranhamente, não viu ninguém no pátio. Tudo estava silencioso.
Depois do almoço, enquanto os adultos fumavam num espaço reservado, pediu para ir à lanchonete azul que vira no pátio para comprar um doce colorido. A mãe deu-lhe algumas moedas e ele saiu correndo antes que o avistassem.
Chegou ao espaço aberto e todos os loucos estavam lá, reunidos, em seus pijamas esbranquiçados. Devia ser hora do exercício diário, ou algo assim. Alguns andavam para lá e para cá, outros olharam para ele interrogativamente. De repente, um cão surgiu do meio do nada, latindo ferozmente, correndo em sua direção. Apavorado, não conseguiu sair do lugar.
Foi quando um dos internos saiu de sua aparente apatia e chamou o cão. Balançando o rabo, o animal voltou e seguiu o homem, que andava devagar. Mas o menino continuava paralisado.
Não sabia qual deveria ser seu próximo movimento. Retroceder para a segurança e normalidade do ambiente enfumaçado de seus pais ou prosseguir, rumo ao desejo de comer um doce colorido, ameaçado por um cão e por pessoas estranhas. "Estou tão perto da lanchonete", pensou. Sem desdém ou covardia diante de seus anseios, seguiu impávido, observando todos os detalhes do pátio amplo. Passos apressados, olhar firme, quase não se reconhecia.
"Quero aquele doce ali", apontou, rígido. A moça embrulhou-o, sem sorrisos para crianças, que ali não era lugar para elas. Pacote na mão, viu-se outra vez sem ação. Onde suprir sua alegria infantil longe dos olhares tristonhos e distantes que o cercavam?
À direita do estacionamento havia uma área erma, uma pequena quadra de esportes de terra batida, cercada de árvores, e para lá o menino se encaminhou, contendo o êxtase. Sentou-se numa mureta e antes de desembrulhar o doce passou a vista ao redor. Ninguém. Abriu o pacote, mas alguém apareceu de repente sentando-se ao seu lado com olhar de soslaio e riso apertado, dizendo "quero uma bala". Sentiu medo, como se estivesse cara a cara com o cão feroz que para ele latira há pouco. "Mãe", palavra curta, idéia clara, fechada e única no redemoinho de invencionices de um garoto; "pai", imagem forte, ajustada, certeira, de um pensamento simplista, quase uma prece, de um menino assustado por natureza.
As mãos pequenas estenderam-se, obedientes, para as mãos sujas do alguém que pedira uma bala. Mas o braço vacilou indefeso diante da afronta da não-realização de seu querer, e as balas azuis, amarelas, vermelhas, verdes e laranja caíram, misturando-se à areia. "O que não mata engorda" foi a frase dita pelo alguém que catou um a um os doces, soprando-os e engolindo-os.
O menino já estava longe, correndo contra o tempo, pois sabia que haveria ainda para si lanchonetes abertas a vender-lhe novos doces e um ambiente severo e fumacento onde poderia suprir sua carência de distanciar-se de um mundo desconhecido.
14.6.02
O valoroso batera de minha velha banda, o Estrada Fróes, Marcos, enviou uma surpresa por email hoje. Fotos de um ensaio que fizemos no Teatro Gay-Lussac, em Nikity City, em junho de 1983, semanas antes de uma apresentação no Teatro da Uff. Naquela época, só queríamos saber de tocar. Uma vida mansa. As fotos (a maioria tremida e desfocada, aviso logo) estão neste endereço. Na formação, eu na guitarra (de barba), Antônio na segunda guitarra, Leopoldo no baixo, Marcos na bateria e Hélcio Luiz no teclado. Hélcio e eu estávamos vários quilos mais magros então. E eu fiquei com saudade dos meus cabelos (quanta diferença ;-)))))))
13.6.02
12.6.02
Acabei de enviar mais uma colaboração para o belo projeto A Cadeira. Dessa vez, discorro brevemente sobre o livro de Ernesto Sábato "Sobre heróis e tumbas". Pretendo participar mais vezes, porque falar dos livros que nos marcaram é um enorme prazer.
11.6.02
Momento rock -- 14
"Quando toco uma nota -- se o faço corretamente -- sou tão importante quanto Hendrix, Clapton ou outro músico, porque atinjo a alma da pessoa que está ouvindo. As pessoas costumam perguntar: 'que tipo de guitarra é essa? que tipo de alto-falante é esse?' Não é nada disso, é a nota. Quando você explica isto, os garotos perguntam: 'também posso fazê-lo?'. Claro, podemos ensinar como colocar cinco idéias em apenas uma nota: alma, coração, mente, corpo e 'cojones'. Uma nota."
Santana
"Quando toco uma nota -- se o faço corretamente -- sou tão importante quanto Hendrix, Clapton ou outro músico, porque atinjo a alma da pessoa que está ouvindo. As pessoas costumam perguntar: 'que tipo de guitarra é essa? que tipo de alto-falante é esse?' Não é nada disso, é a nota. Quando você explica isto, os garotos perguntam: 'também posso fazê-lo?'. Claro, podemos ensinar como colocar cinco idéias em apenas uma nota: alma, coração, mente, corpo e 'cojones'. Uma nota."
Santana
Aliás, em que pese toda a nossa indignação com a morte do Tim, a verdade é que jornalista é profissão de risco há muito, muito tempo. Do panfletário Marat em 1793 ao Daniel Pearl este ano, passando por Leonard Henricksen em 1973, se somados todos os casos de assassinato haveria uma tsunami de sangue.
Eu confesso que não gosto de rap. Mas o MV Bill fez o melhor artigo sobre Tim Lopes hoje, no Globo. Aqui.
9.6.02
Minicontos do desconforto -- 21
Ela cutucou seu ombro de leve, olhou para ele e sorriu durante a música, dando a entender que endossava o trecho que a cantora desfiava, lânguida -- e o endossava em relação a ele, ao relacionamento distante mas íntimo que ambos levavam. Ele baixou os olhos e, se a luz permitisse, ela o teria visto enrubescer. Ele se sentiu aquecido e gratificado e quis tocar a mão da companheira, mas ela estava tão radiante que preferiu apenas olhá-la e guardar aquele momento para sempre.
Satisfeita, a Felicidade deixou os dois sossegados na mesa e passou para a próxima.
Ela cutucou seu ombro de leve, olhou para ele e sorriu durante a música, dando a entender que endossava o trecho que a cantora desfiava, lânguida -- e o endossava em relação a ele, ao relacionamento distante mas íntimo que ambos levavam. Ele baixou os olhos e, se a luz permitisse, ela o teria visto enrubescer. Ele se sentiu aquecido e gratificado e quis tocar a mão da companheira, mas ela estava tão radiante que preferiu apenas olhá-la e guardar aquele momento para sempre.
Satisfeita, a Felicidade deixou os dois sossegados na mesa e passou para a próxima.
8.6.02
Som na caixa!!!!
I'm in love and it feels so good
'Cause I need her, don't mistreat her
And I tell her so
When I saw her and she looked my way
I was lonely, she's my only
And I've gotta say that
I would steal anything for my baby
I'd wheel and deal anything for my baby
Crawl or kneel, anything for my baby
In the morning when I raise my head
She's beside me, she can hide me
When I'm feelin' low
If I'm thinkin' everything's all wrong
My girl shakes me, she awakes me
Then I really know that
I would steal anything for my baby
I'd wheel and deal anything for my baby
Crawl or kneel, anything for my baby
("Anything for my baby", Kiss, 1975)
I'm in love and it feels so good
'Cause I need her, don't mistreat her
And I tell her so
When I saw her and she looked my way
I was lonely, she's my only
And I've gotta say that
I would steal anything for my baby
I'd wheel and deal anything for my baby
Crawl or kneel, anything for my baby
In the morning when I raise my head
She's beside me, she can hide me
When I'm feelin' low
If I'm thinkin' everything's all wrong
My girl shakes me, she awakes me
Then I really know that
I would steal anything for my baby
I'd wheel and deal anything for my baby
Crawl or kneel, anything for my baby
("Anything for my baby", Kiss, 1975)
Já estão no Amigos Blogueiros as fotos do encontro na quinta-feira. A bela Bani caprichou, elas ficaram ótimas e refletem o clima da festa.
7.6.02
O encontro blogueiro na Lapa, ontem, foi relax e divertido. Foi superlegal conhecer escribas como a Suely, a Tina e a Bani. E rever velhos amigos também, como o Maggi. Faltou a Valeska, fiquei com saudade. Ficamos todos de prosa até cerca de uma e quinze da manhã. Só faltou um som para balançar o esqueleto, mas isso fica para a próxima!!
6.6.02
Uma noite sui generis ontem. Eu e Alessandra Archer fomos assitir a um sensacional show acústico da Suely "SexoPuro" Mesquita, na Casa da Gávea, acompanhada, para minha gratíssima surpresa, do meu velho amigo Serginho Tannus, grande violonista, guitarrista, cavaquinista e outros "istas" mais. O show foi apenas o máximo. Suely não só canta e compõe muito bem como tem uma postura de palco recheada do mais puro carisma. No fim da noite, tomando a saideira no Hipódromo, encontramos de repente Crib Tanaka, minha short story partner, com o falaense Laerton Glauquito. Os dois caíram na lábia do big boss do Falaê Augusto Sales, que lhes jurou que a festa blogueira do Ernesto era ontem (é hoje) e levou os dois sub-repticiamente para a night... Desconfiamos todos que Augusto queria que Crib e Laerton fizessem as pazes, depois de rusgas literárias na lista do site. A comédia total foi saber que o Augusto ficou perguntando por todo o bar quem conhecia um tal de André Machado, quando o cara já me conhece há alguns meses... A Crib (ah, tem conto novo da gente aí embaixo), assim que o Augusto ligou, praticamente saiu de um soninho pronta para a night (e ela estava nos trinques, uma beleza) e ficou bolada.
Parece papo de bêbado (bem, eu tomei umas cervejas, uns chopes...), mas foi o que rolou.
Madrugada realmente hilária.
Parece papo de bêbado (bem, eu tomei umas cervejas, uns chopes...), mas foi o que rolou.
Madrugada realmente hilária.
De vodca, tequila, sonhos e desilusões amorosas (ou: o portão)
André Machado e Crib Tanaka
Sempre sonhava que estava voando. Começava a caminhar pela pracinha a dois quarteirões e, antes de chegar à estátua no centro, decolava, passando por cima das copas das árvores. Devia existir mesmo esse negócio de projeção astral, pensava, porque toda vez que o sonho acabava ela acordava, suada, com um solavanco ou tremedeira involuntária. E ficava sempre com saudade do vôo, mas quando voltava a dormir as histórias oníricas eram outras.
Um dia bebeu demais. Vodca primeiro, com laranja, e depois tequila com sal e limão. Não podia dar boa coisa. Já foi dormir com a dor de cabeça apontando no fundo do crânio. Gemeu, antecipando a ressaca. Mas o sono veio rápido como uma bigorna na cabeça.
Estava na praça de novo. O ar tinha, desta vez, uma estranha qualidade de gelatina. Até cheiro de gelatina havia. Deu dois passos e flutuou. Logo estava no céu riscado de nuvens, os braços abertos, a camisola brilhante recebendo por dentro gostosas correntes de ar gelado. "Se eu continuar com esse sonho acordo sem aquele gosto de guarda-chuva na boca", riu.
O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu.
Lentamente, foi sendo levada até ele. A sensação era a mesma do pós-três doses de vodca. A camisola bateu no laranja do corroído metal e um pedaço do tecido se enganchou no grande portão de ferro. "Deixa, deixa", disse a si mesma, com voz lenta. Não percebera de imediato, mas por um bom tempo ficou parada, presa ao portão, com os pés buscando direção num bobo movimento aliado ao das longas mãos.
Acordou ofegante, assustando Runi, seu gato.
Levantou-se para tomar um copo d'água. Runi se confundia com a escuridão, enroscava-se em suas pernas, querendo brincar. Ela andava com passos-gato, tateando o gelado das paredes, protegendo-se das quinas das portas. Abriu a geladeira e a luz amarelada deu forma a todos os móveis da cozinha.
Sentou-se um pouco, de frente para a janela, perto do varal. Olhava o céu, enquanto tomava sua água e se deixava acalmar. Lua minguante, sensação de inacabado, melancolia, solidão. Ela estava só.
Naquele dia tinha saído para tentar curar-se de uma dor. Pontada fina de faca-homem a havia atingido no ventre. Sabia que estava sendo deixada quando ele a beijara daquela maneira. Lágrimas correram pela boca. Saliva salgada de mar. E vermelhidão de desejo não consumado. Não disseram nada. Apenas um beijo e estava só.
Continuou sentada no balcão do pub irlandês. Impressionava-se com a alegância das pessoas no frio. Lado positivo da negatividade dos graus. Ela agora olhava-se no espelho e era impossível não deixar escapar um leve sorriso. Sentia-se linda com seu casaco 7/8 de veludo preto, com suas botas de couro até o joelho. A pele branca, porcelana sem rachaduras, não era invadida por água, nem óleo. Os cabelos curtos, ondulados, de cor indefinida -- meio louros, meio castanhos -- estavam milimetricamente penteados e sustentavam o rosto de menina da década de 20. Acendeu um cigarro e riu com a imagem melindrosa que tinha. A boca-coração rósea, o corpo esguio, os olhos de cílios longos. Por um momento divertiu-se com todos esse adjetivos que via no espelho. Lembrou-se do beijo.
Mais uma tequila, por favor. O garçom enxugava os copos e duvidava da sobriedade daquela mulher. Pensou em convencê-la a não mais beber, mas seria dinheiro a menos que ganharia. E gostava de admirar uma mulher bonita e bêbada. A mistura -- como a de alguns coquetéis -- era frágil e poderosa ao mesmo tempo.
A melindrosa foi embora quando conferiu que seu dinheiro acabara. Ao seu lado, somente um senhor de cabelos brancos que desde o começo da noite olhava para um ponto fixo, enquanto tragava um cigarro de filtro amarelo. Desceu as escadas do pub apoiando-se no gelado corrimão de madeira. Os saltos finos sustentavam pouco de sua alma. Seu corpo precisava de apoio maior que os próprios pés. Mesmo assim, foi andando para casa. Pelo menos não tinha frio: o organismo estava quente. Vodca e tequila circulavam nela.
Demorou para achar as chaves da porta principal. Caminhou até o quarto. Esquecera a calefação ligada. Sentiu calor. Na pia do banheiro, lavou o rosto, as mãos. A imagem borrada no espelho contrastava com a que vira no bar. Tirou os brincos e deu por falta de um anel. Jogou a roupa no chão e vestiu uma camisola branca, feita de algodão e renda, de mangas compridas.
Estava agitada. Assim que entrou no limiar do sono, pôde sentir que lágrimas molhavam o travesseiro e escorriam pelo rosto, pescoço, seios. Sentia-se afogada nele. Até que um vento secou-lhe a roupa. E o corpo. Ventava, mas não fazia frio. O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu. Abriu-o com chaves que estavam num colar que carregava. No começo, a imagem disforme com a qual deparou-se pertubou-a. Sentia que para vê-la com nitidez precisaria de tempo. Sentou-se então num sofá vermelho, confortável. E dele tentava vislumbrar... o quê?
"Aceita um cigarro, mademoiselle?" A pergunta vinha de um homem novo, moreno, de terno. Era um homem da década de 50. "Sim, obrigada". "O que está olhando?", perguntou ele, acendendo o cigarro dela. "Estou tentando ver o que está ali", respondeu. "Curioso, curioso... Tenho que ir. Bonjour", retrucou ele, e afastou-se, atravessando o portão.
Ela fumava e olhava para a imagem que permanecia parada à sua frente. Agora podia ver melhor o contorno da boca. Acreditava ser uma mulher. Não tinha certeza. Pouco depois, reconheceu os olhos. Eram do homem que a apunhalara em suas forças. As mãos longilíneas, o corpo largo. Sentia o cheiro do perfume que saía de seu pescoço. Não gostava de perfumes, mas ele sempre se perfumava antes de encontros com ela. No indicador da mão esqueda, percebeu o anel que perdera no pub irlandês. Os pés calçados em sapatos de couro italiano. A camisa branca de seda, comprada na Índia. Sempre fora um homem que só vestia grandes grifes. Os cabelos num tom castanho-escuro. Os olhos de quem não sente.
Era ele. Nariz largo, pele morena. Quando tudo tomou forma, olhou mais uma vez para a boca. A boca não era a dele. A boca que via era feminina. Aquela boca era a sua boca, sua boca rósea, sua boca-melindrosa, sua boca pequena de mulher. Ele a engolira. E agora ela não mais acordaria.
André Machado e Crib Tanaka
Sempre sonhava que estava voando. Começava a caminhar pela pracinha a dois quarteirões e, antes de chegar à estátua no centro, decolava, passando por cima das copas das árvores. Devia existir mesmo esse negócio de projeção astral, pensava, porque toda vez que o sonho acabava ela acordava, suada, com um solavanco ou tremedeira involuntária. E ficava sempre com saudade do vôo, mas quando voltava a dormir as histórias oníricas eram outras.
Um dia bebeu demais. Vodca primeiro, com laranja, e depois tequila com sal e limão. Não podia dar boa coisa. Já foi dormir com a dor de cabeça apontando no fundo do crânio. Gemeu, antecipando a ressaca. Mas o sono veio rápido como uma bigorna na cabeça.
Estava na praça de novo. O ar tinha, desta vez, uma estranha qualidade de gelatina. Até cheiro de gelatina havia. Deu dois passos e flutuou. Logo estava no céu riscado de nuvens, os braços abertos, a camisola brilhante recebendo por dentro gostosas correntes de ar gelado. "Se eu continuar com esse sonho acordo sem aquele gosto de guarda-chuva na boca", riu.
O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu.
Lentamente, foi sendo levada até ele. A sensação era a mesma do pós-três doses de vodca. A camisola bateu no laranja do corroído metal e um pedaço do tecido se enganchou no grande portão de ferro. "Deixa, deixa", disse a si mesma, com voz lenta. Não percebera de imediato, mas por um bom tempo ficou parada, presa ao portão, com os pés buscando direção num bobo movimento aliado ao das longas mãos.
Acordou ofegante, assustando Runi, seu gato.
Levantou-se para tomar um copo d'água. Runi se confundia com a escuridão, enroscava-se em suas pernas, querendo brincar. Ela andava com passos-gato, tateando o gelado das paredes, protegendo-se das quinas das portas. Abriu a geladeira e a luz amarelada deu forma a todos os móveis da cozinha.
Sentou-se um pouco, de frente para a janela, perto do varal. Olhava o céu, enquanto tomava sua água e se deixava acalmar. Lua minguante, sensação de inacabado, melancolia, solidão. Ela estava só.
Naquele dia tinha saído para tentar curar-se de uma dor. Pontada fina de faca-homem a havia atingido no ventre. Sabia que estava sendo deixada quando ele a beijara daquela maneira. Lágrimas correram pela boca. Saliva salgada de mar. E vermelhidão de desejo não consumado. Não disseram nada. Apenas um beijo e estava só.
Continuou sentada no balcão do pub irlandês. Impressionava-se com a alegância das pessoas no frio. Lado positivo da negatividade dos graus. Ela agora olhava-se no espelho e era impossível não deixar escapar um leve sorriso. Sentia-se linda com seu casaco 7/8 de veludo preto, com suas botas de couro até o joelho. A pele branca, porcelana sem rachaduras, não era invadida por água, nem óleo. Os cabelos curtos, ondulados, de cor indefinida -- meio louros, meio castanhos -- estavam milimetricamente penteados e sustentavam o rosto de menina da década de 20. Acendeu um cigarro e riu com a imagem melindrosa que tinha. A boca-coração rósea, o corpo esguio, os olhos de cílios longos. Por um momento divertiu-se com todos esse adjetivos que via no espelho. Lembrou-se do beijo.
Mais uma tequila, por favor. O garçom enxugava os copos e duvidava da sobriedade daquela mulher. Pensou em convencê-la a não mais beber, mas seria dinheiro a menos que ganharia. E gostava de admirar uma mulher bonita e bêbada. A mistura -- como a de alguns coquetéis -- era frágil e poderosa ao mesmo tempo.
A melindrosa foi embora quando conferiu que seu dinheiro acabara. Ao seu lado, somente um senhor de cabelos brancos que desde o começo da noite olhava para um ponto fixo, enquanto tragava um cigarro de filtro amarelo. Desceu as escadas do pub apoiando-se no gelado corrimão de madeira. Os saltos finos sustentavam pouco de sua alma. Seu corpo precisava de apoio maior que os próprios pés. Mesmo assim, foi andando para casa. Pelo menos não tinha frio: o organismo estava quente. Vodca e tequila circulavam nela.
Demorou para achar as chaves da porta principal. Caminhou até o quarto. Esquecera a calefação ligada. Sentiu calor. Na pia do banheiro, lavou o rosto, as mãos. A imagem borrada no espelho contrastava com a que vira no bar. Tirou os brincos e deu por falta de um anel. Jogou a roupa no chão e vestiu uma camisola branca, feita de algodão e renda, de mangas compridas.
Estava agitada. Assim que entrou no limiar do sono, pôde sentir que lágrimas molhavam o travesseiro e escorriam pelo rosto, pescoço, seios. Sentia-se afogada nele. Até que um vento secou-lhe a roupa. E o corpo. Ventava, mas não fazia frio. O vôo se prolongou. Estava indo a lugares diferentes, longe das paisagens beatíficas dos outros sonhos. As nuvens ganharam barrigas roxo-acinzentadas de tempestade e o vento soprou violento em seus ouvidos. Fez uma curva e levou um susto.
Havia um portão enferrujado no meio do céu. Abriu-o com chaves que estavam num colar que carregava. No começo, a imagem disforme com a qual deparou-se pertubou-a. Sentia que para vê-la com nitidez precisaria de tempo. Sentou-se então num sofá vermelho, confortável. E dele tentava vislumbrar... o quê?
"Aceita um cigarro, mademoiselle?" A pergunta vinha de um homem novo, moreno, de terno. Era um homem da década de 50. "Sim, obrigada". "O que está olhando?", perguntou ele, acendendo o cigarro dela. "Estou tentando ver o que está ali", respondeu. "Curioso, curioso... Tenho que ir. Bonjour", retrucou ele, e afastou-se, atravessando o portão.
Ela fumava e olhava para a imagem que permanecia parada à sua frente. Agora podia ver melhor o contorno da boca. Acreditava ser uma mulher. Não tinha certeza. Pouco depois, reconheceu os olhos. Eram do homem que a apunhalara em suas forças. As mãos longilíneas, o corpo largo. Sentia o cheiro do perfume que saía de seu pescoço. Não gostava de perfumes, mas ele sempre se perfumava antes de encontros com ela. No indicador da mão esqueda, percebeu o anel que perdera no pub irlandês. Os pés calçados em sapatos de couro italiano. A camisa branca de seda, comprada na Índia. Sempre fora um homem que só vestia grandes grifes. Os cabelos num tom castanho-escuro. Os olhos de quem não sente.
Era ele. Nariz largo, pele morena. Quando tudo tomou forma, olhou mais uma vez para a boca. A boca não era a dele. A boca que via era feminina. Aquela boca era a sua boca, sua boca rósea, sua boca-melindrosa, sua boca pequena de mulher. Ele a engolira. E agora ela não mais acordaria.
5.6.02
Amanhã sou presença garantida na festa da Elis, no Ernesto, na Lapa, que a princípio comemoraria as dez mil visitas ao blog dela, mas já está se transformando num encontro de blogueiros. Não admira, já que a figura em questão é uma das maiores blog-agitadoras do pedaço. Que venha a festa!
4.6.02
Minicontos do desconforto -- 20
Era outono, a melhor estação para se estar no Rio de Janeiro. Ele acordou com um raio de sol batendo em seu camisolão ensebado. Num dia como aquele, cavalgaria por quilômetros e quilômetros sem se cansar, aspirando o ar livre de umidade e recebendo na farda os generosos raios de um sol temperado, jamais furioso como entre janeiro e março.
"Bom, hoje não vai ser possível cavalgar", pensou. "Mas darei uma caminhada pelo centro da cidade."
Antecipava o prazer da jornada a pé quando entrou o barbeiro. Em sua mente, imaginou-se prestes a ir a um sarau, vestindo gala. Para isso, era preciso livrar-se daquele penteado demodê. Riu consigo mesmo enquanto o outro pegava a bacia e a navalha. O barbeiro não quis conversar naquela manhã. Estava com uma cara triste. Ele respeitou seu silêncio. Mesmo assim, o ágil profissional pareceu ler sua mente e raspou-lhe barba e cabeleira sem pestanejar.
Sentiu-se renovado. Banhou-se e vestiu-se de branco. Sorriu ao sair para o sol. Os homens o aguardavam. Postou-se diante deles e deu o primeiro passo.
Percebeu que ficara famoso. As ruas estavam cheias. Todos queriam vê-lo. Mas ninguém acenava. Ninguém apreciava as carícias solares como ele. Bem, fazer o quê? Seguiu adiante, admirando a beleza carioca.
Eles não sabiam, mas ele logo seria um homem livre, como sempre sonhara, desde os tempos de menino.
Muitos anos depois, nas tavernas da capital, onde se celebrava a proclamação da independência, os mais velhos lembraram o enigmático sorriso do alferes Joaquim José naquela manhã de abril de 1792.
Era outono, a melhor estação para se estar no Rio de Janeiro. Ele acordou com um raio de sol batendo em seu camisolão ensebado. Num dia como aquele, cavalgaria por quilômetros e quilômetros sem se cansar, aspirando o ar livre de umidade e recebendo na farda os generosos raios de um sol temperado, jamais furioso como entre janeiro e março.
"Bom, hoje não vai ser possível cavalgar", pensou. "Mas darei uma caminhada pelo centro da cidade."
Antecipava o prazer da jornada a pé quando entrou o barbeiro. Em sua mente, imaginou-se prestes a ir a um sarau, vestindo gala. Para isso, era preciso livrar-se daquele penteado demodê. Riu consigo mesmo enquanto o outro pegava a bacia e a navalha. O barbeiro não quis conversar naquela manhã. Estava com uma cara triste. Ele respeitou seu silêncio. Mesmo assim, o ágil profissional pareceu ler sua mente e raspou-lhe barba e cabeleira sem pestanejar.
Sentiu-se renovado. Banhou-se e vestiu-se de branco. Sorriu ao sair para o sol. Os homens o aguardavam. Postou-se diante deles e deu o primeiro passo.
Percebeu que ficara famoso. As ruas estavam cheias. Todos queriam vê-lo. Mas ninguém acenava. Ninguém apreciava as carícias solares como ele. Bem, fazer o quê? Seguiu adiante, admirando a beleza carioca.
Eles não sabiam, mas ele logo seria um homem livre, como sempre sonhara, desde os tempos de menino.
Muitos anos depois, nas tavernas da capital, onde se celebrava a proclamação da independência, os mais velhos lembraram o enigmático sorriso do alferes Joaquim José naquela manhã de abril de 1792.
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