26.11.03

Minicontos do desconforto -- 61
(baseado em sugestão do Fortunato)

Acordou dentro do caixão. Tinha se esgueirado pouco antes de colocarem a tampa, na noite anterior, quando todos estavam chorando e se confortando, sem prestar mais nenhuma atenção ao defunto. Sentiu o sacolejo e ouviu o arfar dos parentes do morto quando o ataúde foi carregado colina acima, até o jazigo sob o pé de jamelão. Sentiu o cheiro enjoativo das frutas repisadas na grama.

Não podia viver sem ele, que estava lindo com a plástica post-mortem. Nem mesmo nas fotos da juventude parecera assim, tão digno e composto. Ah, sentiria falta de sentar em seu colo, de cheirá-lo curiosa, de vê-lo estremecer quando ela passava a língua em seu pescoço (não resistiu e lambeu agora a orelha rígida). Pelo menos ficaria com ele. Para sempre.

Foi somente anos mais tarde que descobriram, ao exumar por engano o corpo numa investigação criminal, um esqueleto de animal pequeno ao lado da caveira.

-- Parece o de um gato -- comentou um dos peritos.

-- Gata. Olha a fita com o nome: "Sofia".

Nenhum comentário: