Minicontos do desconforto -- 59
(para Camila)
Foi quando voltou para casa após a missa de sétimo dia que entendeu: nunca mais, nunca mais mesmo, ouviria as tolices dela quando chegava em casa. Não ouviria o riso franco de quando ela contava uma besteira que fizera e começava a rir de si mesma antes dos outros, que acabavam rindo de sua própria gargalhada, tão inocente e convidativa.
A missa fora cedo; sentou-se para tomar o café. Lembrou-se dos comentários que ela fazia sobre o noticiário à mesa, muitas vezes mais pertinentes que os dos articulistas arrogantes que fingiam saber tudo. E pensou que tudo nela combinava à perfeição com ele, principalmente as coisas mais triviais. Oh deus, eram como pão quente e manteiga, queijo com goiabada, cigarro e cerveja gelada. Oh deus. E só ali, sozinho sob a luz matinal, ele chorou sobre a xícara como jamais chorara em sua vida.
Então passou sua filha mais nova com um dos filhotes de gato no colo, cantando uma música de desenho japonês, daquelas que nem um PhD em sânscrito entenderia.
O gatinho se desenroscou, subiu na cabeça dela e tapou-lhe a visão por um momento, antes de pular para o chão e correr. Ela exclamou o nome do bicho em tom de reprovação, depois se virou para o pai e descreveu a cena com detalhes infantis. "Você viu, pai?", repetia. E ria um riso conhecido. Um riso de gerações.
E ele entendeu que ia sobreviver. E chorou mais um pouquinho, só que dessa vez as lágrimas limparam o desespero de sua face.
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