A ressaca
Ainda bêbado, intuía que ia passar pela pior ressaca de sua vida. Depois de quatro garrafas de uísque paraguaio caubói consumidas com os amigos na madrugada deprê, precisou ser carregado para a banheira, onde, misturando inglês e alemão, fazia declarações de amor à futura ex-namorada ausente. Depois, o vômito inevitável. E o esquecimento.
Acordou perfeito na manhã seguinte. Perfeito. O crânio quieto dentro da testa. Nenhum machado invisível enfiado no meio da careca, o aço latejando do cocuruto às têmporas. Nenhum gosto de lata de azeite enferrujada dentro da boca. Se gostasse de exercício, podia até sair para um cooper à beira da lagoa. Sentia-se bem como nunca.
Aí arregalou os olhos ao ver na cômoda as quatro garrafas de uísque de Assunção. Cheinhas. Intocadas.
Olhou o calendário. Não! Devia ser a manhã de domingo. Mas estava lá a folha de sábado, que ele mesmo arrancara.
Ligou a TV. As notícias de sábado. Tudo igual. "Aimedeus aimeudeus eu voltei no tempo", gemeu. "Será que vou tomar aquele porre terrível de novo?"
Fugiu espavorido de casa. Ia fazer tudo diferente. Passou na casa da namorada. Ela tinha saído. Ligou para os pais. Estavam em Petrópolis. Não podia falar com o Zé, nem com o Carlos, nem com o Ivan, que eram os co-porristas. Correu para a rodoviária, esquecendo que estava sem dinheiro vivo. Não aceitavam cheque no guichê. O banco ficava a duas quadras; o 24 horas estava sem dinheiro. Mas que merda.
Aí encontrou o Zé na sinuca da esquina. Ficou branco. O outro acenou e ele gritou de pavor, disparando rua acima. Acabou voltando para casa. Ia se trancar, sem atender ninguém até aquele pesadelo passar. Sentou-se na cama, esbaforido.
Como é que o porre tinha começado mesmo? Alguém chegou e...
Bateram na porta. "Miguel, é o Carlos!"
Ih, foi assim mesmo. Decidiu não responder.
"Miguel, eu sei que você está aí, te vi entrar. Responde, homem de Deus!"
Nada.
"Ivan, eu estou ouvindo uma respiração pesada... ele pode estar passando mal depois da bebedeira de ontem".
Hein?
Olhou para a cômoda. As garrafas vazias. Na folhinha, a data de domingo.
Então veio tudo junto: o gosto de ferrugem, o terremoto no crânio, o suor frio. Desabou na cama, lânguido como uma maria-mole.
Toda a ressaca tomou conta de seu corpo; foi como se um fenemê o atropelasse.
Ao desmaiar sobre a cama desarrumada, só pôde ouvir de longe o sussurro do Tempo: "desculpe, erro de devolução..."
Num hospital em Helsinque, Rainer Torvald recuperou a memória depois de doze anos, no dia de seu aniversário -- um sábado.
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