22.2.03

Conversas -- IV

-- Estou com um problema.
-- Fala.
-- Adoro minha namorada. Mas ela não me conhece.
-- Como é?
-- Quero dizer, ela não sabe da metade do que se passa na minha cabeça.
-- Vai por mim, meu chapa, é melhor assim. Se elas sabem tudo, o amor acaba na hora.
Risos.
Chegam mais dois chopes.
-- Mas olha, vou explicar melhor. Tem esses negócios que eu escrevo... verdadeiros chafarizes da alma...
-- Você e esses seus termos...
-- Dá para entender, não dá? São aqueles questionamentos, aquelas inquietações que de vez em quando passam pelo cérebro. Como aqueles calafrios inesperados que todo mundo tem.
-- Sei.
-- Pois é. Tenho algumas amigas maravilhosas, com quem compartilho esses escritos mais viajantes. E existe um clima especial com essas amigas que não existe com ela.
-- É, mas com ela existe o sexo.
-- É. É isso aí. Existe a carne, e é ótima. Mas o pouco de romance, de viagem, que a gente tinha no começo já era, sacou?
-- E você imagina poder juntar seus escritos da alma com a mulher que conhece o seu corpo.
-- Mais ou menos isso aí. Cara, o que eu queria era uma mulher que me sacasse por inteiro, que realmente compartilhasse de minhas inquietações... Por isso fico tão fascinado com minhas amigas, tenho verdadeira paixão por elas. Se uma delas me quisesse como homem, seria o melhor dos dois mundos. Mas sinto que é meio tarde para apresentar esse outro mundo, esse outro eu, a minha namorada.
-- Ela vai achar que você é maluco, se eu a conheço um pouco.
-- É disso que eu tenho medo. Nossa história teve poesia, é claro, mas como em toda história longa, isso ficou para trás. E o que eu escrevo agora é diferente. É visceral...
-- Você pode tentar mostrar a ela. Mas, francamente, acho que seu sonho é impossível. Conciliar o amor intelectual com o carnal, o cotidiano, é foda. E, mesmo que acontecesse algo entre você e uma de suas amigas, com o tempo sua relação com ela se pareceria com a que você leva com sua namorada hoje. E isso sem falar que para sua namorada pode ser a mesma coisa, você pode não saber metade do que se passa na cabeça dela.
-- Você tem razão. Mas deveria ser possível uma relação em que os encantamentos não cessassem, em que as pessoas fossem capazes de se surpreender, de olhar para o outro todas as manhãs como se ele fosse um estranho e você tivesse vontade de dizer olá e se apresentar, tentar a sedução...
-- Talvez isso seja possível. Mas certamente é um bocado difícil. O tempo tira os encantos do corpo, e nós mesmos nos encarregamos de pôr minhocas em nossas mentes...
Silêncio contemplativo.
-- Você está ficando mais filosófico que eu, cara. Isso é preocupante.
-- Para você ver a má influência que você é. Mas isso tem remédio. Garçom!...

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