17.12.02

Historieta de Natal

Levantou-se. As costelas protestaram. Ainda fazia um friozinho lá fora, mas logo o calor insuportável tomaria seu lugar. Pegou o saco, que encontrara numa lixeira do prédio do BNDES há muitos verões, e que pretendia usar como cobertor, até que viu um carrinho no fundo dele na manhã seguinte e o dera para o filho no Natal daquele ano. Nunca questionara a propriedade multiplicadora do saco. Achava que era porque vinha do governo. Um subsídio que eles não entenderiam. Riu sozinho.
Esquentou o café na caneca surrada. Tragou-o puro, chamejante. Por fim acordou.
Ainda mastigando o pão de ontem com uma bitoca de manteiga, saiu e atrelou o Nicolau à carroça. Nicolau era um burro valente, capaz de agüentar o pior sol de Bangu. Vestiu a camiseta, pôs a velha boina de recruta na cabeça e começou o sacolejo em direção à saída da favela.
Passou o dia distribuindo discretamente presentes às crianças largadas nos sinais, aos adolescentes nos reformatórios, às mães sujas com bebês no colo sob as marquises. O saco funcionou fielmente mais uma vez.
O sol começou a cair e Nicolau já estava subindo a ladeira. Levou a carroça sozinho nos últimos metros, já que ele saltou na birosca. Encheu a cara de cachaça. Só comeu uns salaminhos com cara de safados.
Já de porre o suficiente para ferrar no sono, cambaleou até o barraco.
Nunca mais aquela neve nojenta, pensou.
Nunca mais aqueles duendes babacas.
Nunca mais aquelas renas teimosas.
Demorô.
Quem estaria lá, em seu lugar? Provavelmente o pessoal do marketing. Do marketing e da papelada. Aqueles que sabem tudo sobre sinergia, downsizing, fidelização, o c%$#@&*. Mas não entendem nada de noites felizes, porque são criaturas solitárias.
Pare de pensar nisso, ordenou-se. Caiu na cama improvisada; seu pé esbarrou na mesinha e um passaporte encardido foi ao chão.
Um raio de luar bateu na página onde estava o carimbo DEPORTADO, escrito em inuit, como o "Motivo da deportação: insistência em passar a dar presentes somente às crianças pobres, deixando para os pais mais aquinhoados a tarefa de comprar os de seus filhos. Desacato à Autoridade Celestial Suprema."
Autoridade... bah.
Dormiu o sono dos justos.

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