8.11.02

Minicontos do desconforto --37

Cresceu uma criança obediente. Foi um estudante obediente e, tendo-se casado muito jovem, cedo tornou-se também um marido obediente. Aos poucos, levado pela maré da mediocridade, transformou-se num não-homem. E nada mais alimentava o seu nada interior com tanta presteza quanto o álcool.
Devagarzinho, foi-se alienando da família. Os filhos, ainda adolescentes, já não o distinguiam do padrão do estampado do sofá. O primogênito o surrou certa vez, achando que socava a parede num acesso de raiva qualquer. A filha, mas tarde, jogou-o dentro de uma caçamba de entulho junto com uma poltrona velha.
No fim, ninguém mais o divisava. E não seria exceção o motorista do ônibus que o atropelou numa tarde de domingo.
Morto, porém, tornou-se material. Ao menos um corpo conseguiu ser. Mesmo assim ficou longos dias na gaveta do IML, até que acharam um cartão amarrotado no bolso com o telefone de uma prima, que o enterrou como pôde num cemiteriozinho de igreja.
Ninguém chorou por sua alma. Nem os proscritos que a acompanharam até o purgatório. Sim, porque ele nada fizera, nem bom nem mau.
Quem o salvou, no fim, foi Buda, o Iluminado, cujo costume de percorrer as diferentes esferas levou-o ao cantinho do não-homem. Buda percebeu que ali houvera um erro de encarnação, e permitiu que ele voltasse ao mundo dos vivos. Como uma pedra ao sol, imóvel e feliz.

(In memoriam: J. Para onde quer que vá, descanse em paz.)

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