"Somente os amantes" -- Capítulo I
Havia muitos anos não caía uma tempestade tão terrível no Rio de Janeiro quanto aquela da Semana Santa de 1991. Carros viraram embarcações, centenas de pessoas ficaram sem suas casas, outros tantos morreram, a leptospirose tomou conta da cidade. Numa casa da rua Cosme Velho, porém, seus ocupantes pareciam alheios à chuva. Os vizinhos ouviram um berro, ruídos de vidro quebrado, e depois de um silêncio repentino um tiro. Apesar da curiosidade, poucos foram os que abriram as janelas para ver apenas de relance um homem encapuzado atravessar a rua e tomar um táxi, apressado. A polícia, chamada pouco depois, encontrou a porta da casa aberta e descobriu (além de mim) um cadáver no chão da sala, com um tiro na boca.
Foi este o fim da amizade entre Otávio e Marcel, que ironicamente começara num dia idêntico, quinze anos antes. Marcel tinha dezessete anos nessa época, e Otávio, dezoito. O primeiro fora passar as férias de inverno na Região dos Lagos, mais precisamente em Coqueiral. Os pais não suportavam o verão, com seu ar abafado, suas cenas vagarosas e seus turbilhões de gente nos balneários. Ademais, eles adoravam tomar banho de lagoa, e no verão as lagoas ficavam ferventes com a força do sol... No inverno, não obstante o frio à noite (que, de resto, convidava a uma caneca de vinho) era delicioso sentar-se pela manhã dentro d'água e conversar, ou simplesmente pensar em nada. Podia-se percorrer quilômetros lagoa adentro com a água salgada até a cintura e sentir-se engolido pelo nítido azul do céu de inverno misturado com a água esverdeada.
Marcel adorava tudo isso também, e mais, a perfeição da lua nas noites estreladas de Coqueiral. Mais tarde comentaria com Otávio, durante uma bebedeira num festival de queijos e vinhos local, que vira a lua mais perfeita de sua vida naquela noite. Otávio riu, com aquele riso abafado que lhe era característico, e zombou do amigo, dizendo que a bebida o envenenara e o tornara um romântico incorrigível. "Isso eu sempre fui", protestou Marcel, e arrastou Otávio para o terraço do clube onde acontecia o festival. O astro estava lá, inchado de luz, completamente estarrecedor em seu espetáculo de derramar alvas folhas virtuais sobre a água parada. Um quadro pintado por Dioniso. O próprio Otávio se surpreendeu declamando um poema imperfeito diante daquela visão. Não o escreveu, porém, e nos anos vindouros seria tema de chacota para Marcel o único verso que lembrava: "És maior que a Terra/E toda a sedução do Mal encerras".
Naquelas férias de inverno, porém, a lua parecia estar de péssimo humor. Não apareceu em nenhum momento. Deixou que as nuvens a ocultassem, desprezando homens e criaturas de Deus. O frio tomou conta das manhãs, também, e não restou nada a Marcel senão ler empoeiradas seleções do Reader's Digest empilhadas num quartinho no fundo da casa que os pais haviam alugado. Em breve, começou a chover por dias seguidos, e o que devia ser prazer tornou-se um pesadelo.
Marcel ficou deprimido, como costuma acontecer com os que são sempre otimistas e entusiásticos. Um dia, abriu a janela, desanimado, para contemplar a praia, tão perto e tão longe. Chovia sem parar. Foi quando ele viu alguém sentado na areia, imóvel e com o rosto voltado para a água. Tinha abundantes cabelos negros, totalmente empapados de chuva, e estava completamente vestido, com jeans, camiseta e tênis. Marcel ficou olhando. Por fim, a curiosidade falou mais alto e ele saiu de casa (não sem antes pegar um guarda-chuva) em direção à praia.
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