27.11.01

Olá. Aí vai mais uma crônica, que anteriormente publiquei no Falaê/Paralelepípedos. Em breve vou postar aqui, em capítulos, um romance que escrevi em 1991. Ele vai virar um blog-folhetim. ;-)

Enivrez vous!

A expressão acima, que também serve de título a um poema de Baudelaire e significa "embriaguem-se!", presta-se perfeitamente para identificar certos points cariocas. E não apenas os bares, centros de excelência da arte de de s'enivrer. (Na verdade, nem todos convidam ao prazer de uma garrafa. Eu diria que o boteco -- venha de onde tiver vindo, uma invenção do Rio -- é o primeiro lugar em que nos sentimos realmente chegados a uma genuína libação, em especial os pés-sujos. O antigo Color Bar, ao lado do prédio da Manchete na Rua do Russell, antes da reforma que o tornou mais palatável aos turistas que infestam o Hotel Glória, era o paraíso dos libadores e um dos chopes mais gostosos da região, sem falar nos sanduíches de polenguinho e de provolone com salaminho. Depois, tem a beira de praia, que dá ainda mais sabor a uma cerveja e torna um manjar dos deuses o peixe frito mais safado. E por aí vai, pois na verdade essa conversa etílica é para outra coluna.)
O que eu dizia é que existem certos locais em que você se embriaga não de álcool (pelo menos nem sempre de álcool), mas de uma espécie de arrebatamento celestial (ou infernal) que transforma de imediato quatro paredes ou muros em um destino certo a ser revisitado. Já que começamos a falar do Catete, darei outro exemplo local: o parque do Palácio do Catete, atual Museu da República. O lugar é carregado de uma forte mística e, ainda que varrido e tratado, mesmo hoje não perde seu ar de abandono, com seus canais e fontes inativos e solitárias estátuas pelos cantos. Nessa época do ano, é ímpar sentar ao sol e observar o farfalhar da vegetação, sentir o silêncio. Ou ler, especialmente algum livro denso, cujas palavras ali parecem gravar-se com maior renitência na mente. Ou ainda levar boa companhia e ter conversas completamente caleidoscópicas naquele borgiano jardim onde os caminhos de nossa História se bifurcam... Uma vez estive lá à noite, para assistir a uma encenação de "Rinoceronte", de Ionesco. Dizem que Vargas gostava de passear pelas aléias à noite, e gosto de imaginar o velho caudilho na noite enevoada de 23 de agosto de 1954 meditando sobre o iminente suicídio diante da fonte principal, que data de cem anos antes. (Pelo que sei, ele não fez nada disso aquela noite, que nem enevoada devia ser, mas gosto de imaginar assim mesmo.)
Outro lugar que faz o cérebro dar voltas e entrar em alfa é a livraria Leonardo da Vinci, no subsolo do edifício Marquês do Herval, no coração da avenida Rio Branco. Toda vez que entro lá tenho a impressão que estou numa catedral construída de livros, e espero a qualquer momento ver passar o sacerdote de Biblos com um turíbulo perfumado e balouçante na mão. É como se os livros falassem e contassem segredos em sussurros que acompanham o agradável tilintar dos pingentes a cada visitante que entra. Pode-se passar horas ali apenas tocando os livros e passeando pelas estantes, sem se dar conta da vida. Ainda que o seu relógio teime em caminhar para diante, tenha certeza de que ali o tempo pára. Seria uma das minhas escolhas para passar a eternidade, não fossem os livros finitos, é claro.
Já parou para pensar nisso? Devem existir lugares que, para você, são mágicos. Por vezes ficamos neles mais tempo do que planejávamos, sem perceber, tomados por algum instinto indefinível, e quando saímos nos damos conta de que estávamos em outro mundo. E às vezes o lugar é de uma simplicidade patética. Pode mesmo ser seu canto preferido em casa. Lugares assim me dão, apenas por sua perspectiva diferente, a certeza de que há pelo menos alguns mistérios que permanecem a salvo da fúria avassaladora da objetividade e da ciência.

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