1.6.04

Minicontos do desconforto -- 71

Sentia nitidamente que o coração estava com capacidade ociosa: ansiava por amar mais, por passar o amor por um prisma e vê-lo espalhar-se em diversos tons. Não compreendia o zelo da sociedade pela constância absoluta (e na verdade impossível); de modo que só conseguia a realização plena tocando sua guitarra no quarto escuro e enchendo a noite de raios invisíveis que saíam de seu peito em chamas.

Os amigos faziam troça dele por ter coragem de lidar com as próprias emoções e aspirar a algo imaterial. Chamavam-no de medieval, retrô e outros adjetivos fáceis. Ele ria e fingia não se abalar; mas percebia a solidão deles (e a sua).

Então, depois de beber alguns uísques a mais numa noite fria de sábado, sonhou com um futuro onde os arqueólogos encontravam suas cartas a Cecily e ficavam se perguntando o que significariam vocábulos como "amo", "desejo", "alma", "beijo".

Despertou sobressaltado e ligou correndo para ela.

-- Venha jantar comigo, pelamordedeus.

-- São duas da manhã, querido.

-- Precisamos celebrar a vida antes que a Tempestade da Banalização vença. No fim, ela é a senhora de todos os impérios, de todos os tiranos, de todos os servos da etiqueta e da diplomacia. Eu sou apenas um homem, e neste invólucro não posso lhe dar todo o amor que sinto; mas o que posso lhe dar não é banal, não é lugar-comum, não é um cinza desbotado. Venha, porque o Tempo sempre passa por aqui e escarnece de meus cabelos cansados.

Cecily ia perguntar "o que deu em você", mas entendeu (e ele pôde sentir do outro lado da linha) que se o fizesse estaria sendo uma agente do banal, do ennui imperdoável.

-- Estou indo.

Quando ela chegou, os dois beberam, dançaram, fizeram amor e dormiram tão profundamente que era como se estivessem mortos. E, embora fizessem tudo como se o mundo fosse acabar amanhã, o Tempo se hospedou aquela noite no velho cuco parado, só para assistir, e a lua não quis ceder seu lugar ao sol, só se retirando após muita argumentação e ainda assim contrafeita.

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