27.4.04

Minicontos do desconforto -- 68

Fim de outono, 1844. Nos arredores de uma fazenda no estado de Nova York, Johnny flana entre as árvores, deprimido. Sua companheira de anos -- uma gentil sem-teto -- desaparecera misteriosamente após uma farra na taverna local. Ele já não sabe viver sem os mimos dela; sente-se só e faminto. Um vento cortante torna sua passagem pelo bosque ainda mais soturna.

Johnny vê uma janela na casa de fazenda, e dirige-se para lá.

Vê um rosto pálido e imóvel recebendo a tênue luz de uma lamparina, perto da janela. Sorri por dentro (sua boca não se move, porém) e dispara até a face, que imagina ser de sua amada, cuja palidez ainda lembra bem.

Johnny toca nos ombros da figura. Percebe que ela está numa espécie de pedestal. Sente-se aquecido e permanece lá, observando um homem sentado a uma mesa no aposento. O homem treme levemente e chora sobre a mesa cheia de papéis. Então vê Johnny e pára. Observa-o atentamente. Súbito, começa uma conversa estranha com seu visitante. Johnny jamais responde.

Mas suas respostas imaginárias serão eternas, e soarão como o pêndulo da noite na mente de todos os amantes abandonados.

Porque Johnny é um corvo.

E o homem transtornado é Edgar Allan Poe.

A pena se move, e no papel surgem as palavras conjuradas em poesia arcana: "Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary..."


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