Minicontos do desconforto -- 57
Chovia quando a mãe conseguiu espantar a ratazana gorda para fora da casa. Ato contínuo, portas e janelas foram fechadas num frenesi, enquanto o bicho comia imperturbável um resto de comida no lixo. A família, como se o pobre roedor marrom fosse uma quadrilha de traficantes, assistia à refeição abrindo os basculantes o mínimo possível.
Foi quando a ratazana viu que lhe atiraram um estranho cubo preto, amarrado a um arame. Sabia muito bem o que era aquilo. E refletiu: podia ficar ali, passeando de um lado para o outro no quintal, (r)atazanando a família para sempre. Como seu pai fizera a vida inteira.
Ou podia largar de vez a existência de pária e morrer uma morte literária. Afinal, era uma ratazana de respeito, não um reles camundongo movido a ansiedade.
Então -- e só um membro da família humana percebeu que havia naquilo um gesto de cansada desesperança, um simulacro do fim de madame Bovary, embora bem mais digno -- a ratazana foi até o cubo e o roeu, olhando para o nada.
No dia seguinte, imóvel e silenciosa ao lado de um saco de lixo, foi recolhida com uma pá e descartada como indigente. Só a carpiram os animais proscritos: as baratas, os vermes e um fazedor de versos de gaveta.
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