16.6.03

Minicontos do desconforto -- 52

Compôs a vida inteira sentindo que o Espírito conversava com ele; a cada sinfonia, era nítido o aspecto de grandeza, de comunicação com os mensageiros alados portando espadas flamejantes.

Mas queria mais: queria falar direto com Ele. Sem intermediários. Sem sicofantas. No auge de sua ânsia, tornou-se um asceta. Jejuou meses a fio. Esqueceu que tinha corpo. Sentou-se ao pé da cama e decidiu que não sairia dali até ouvir o Poder da Voz.

Enfim, conseguiu, durante uma frente fria aguda em pleno finzinho do verão vienense. A experiência quase provocou um choque anafilático. Mas ele sobreviveu, e enquanto voltava a se alimentar, gradativamente, escreveu num frenesi a nova sinfonia, que celebraria, apoteótica, sua máxima epifania.

Foi só depois que terminou que percebeu as lágrimas nos olhos e o tremor nas mãos de sua jovem criada, que o fitava desesperada. E entendeu o significado daquele silêncio maravilhoso que se tinha seguido ao encontro divino.

Ele estava surdo.

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