Marcas
Crib Tanaka e André Machado
Água fria para acordar de vez. Sentiu o sangue pelas pernas. Circulação acordando devagar, junto com os movimentos-vento do corpo dela. Deixava os olhos se irritarem com a água; por vezes, experimentava um leve afogar. Saiu deixando marcas-gotas no chão branco da casa. Com as costas e os pés molhados, deitou-se no sofá, de frente para o ventilador. Balançava os cabelos-chicote deixando-os mancharem as almofadas, paredes, livros. Jogou no chão a toalha que lhe servia de saia até aquele instante. Perto da janela, ensaiou um espreguiçar de férias. Não custava nada enganar-se por alguns segundos. Sentou-se e tomou calmamente uma xícara de café. Com os pés, trouxe até si o jornal deixado embaixo da porta. Passou o olho pela programação do cinema e horóscopo. Acordou.
Foi cumprir suas horas intermináveis no espaço computadorizado, artificialmente frio, vestida como um personagem. Formalidade hipócrita em mórbidos uniformes massificadores. Barulhos de conexões estranhas, vozes comedidas. Desfile coletivo nos corredores de atapetada alergia.
Saindo da cela, acendeu um cigarro. Deixou os vidros do carro abertos e ligou o som. Tirou o blazer e rasgou a meia-calça pretensiosamente cor-da-pele.
Parou em frente à casa dele.
Do chuveiro saíram, deixando marcas-gotas pelo corredor e quarto. Sentia o sangue pelas pernas. Circulação correndo junto com os movimentos-ondas do corpo dele. Circulação estagnada em marcas na alva pele.
Beijaram-se longamente. Tinha saudades da língua dele. Pensara nesse beijo o dia todo, enquanto fazia contas no trabalho. Quando tudo terminou, observou-o -- silenciosa -- arfando, trêmulo e satisfeito. Ele não percebera que ela sangrava de verdade; ele não a percebia. Estava ali, empanzinado e sonolento, encaixando seu cigarro na piteira e acendendo-o com o isqueiro dourado que já falhava. Ele olhava para o teto -- era como se a mulher a seu lado de repente pertencesse a outra galáxia.
Olhando aquele homem, que se bastava com tanta naturalidade, foi sentindo uma raiva surda tomar conta de si. Num ímpeto, tomou a cabeça do amante e forçou-a contra o meio das pernas, chafurdando a expressão beatífica de gozo dele no sangue feminino, pulsante, quente. Ele pensou que ela desejasse mais prazer e beijou seu sexo. Ela marcou seu rosto com a grande mão que tinha, derrubou-o da cama e se dirigiu calmamente ao banheiro.
Água fria. Gelada. Forte.
Abriu a porta ainda o olhando com ódio e com passos decididos, saiu nua pela rua, sangrando e vociferando: filho da puta, filho da puta, filho da puta.
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