21.11.05

Minicontos do desconforto -- 81

Mais tarde ele não soube precisar, mas houve um dia em que dormiu criança e acordou adulto.

Antes, a Fé caminhava de braços dados com ele todos os dias -- na escola, no caminho para casa, durante as refeições, nas brincadeiras com os amigos. E ela tornava-o capaz de engendrar maravilhas com a sua mente crédula, despreocupada -- houve muitas primeiras vezes naqueles anos, um mar de olhos arregalados e de sorrisos francos e lágrimas de origem certa.

Então, num belo dia de maio, conheceu a Dúvida. Lânguida e silenciosa, envolta num vestido cor-de-cisma, ela o olhou de cima da mangueira onde ele se recostava com um livro. Ele olhou para cima, formulando uma pergunta e, sem saber, deu com os olhos da dama, oblíquos como os de Capitu.

Devagar, sem pressa, numa imitação digna de Oscar da serpente do Gênese, ela desceu da árvore e soprou sobre as folhas do livro. Ele leu um pouco mais e seu semblante ficou carregado.
Naquele fim de tarde, as afirmações dos amigos ficaram translúcidas e, quando a noite caiu, ele deixou de adivinhar os desenhos das constelações e passou a se perguntar quando as estrelas que via tinham morrido e quanto de falso tinha seu brilho.

Quando se deitou, a Dúvida fez amor com ele. Mas ele duvidou: achou que havia sido apenas uma polução noturna.

E ela riu quando percebeu que ele estava pronto. Riu o mesmo riso irônico que ele ofereceu a sua irmã menor no café da manhã do dia seguinte, quando ela lhe falou da fada dos dentes. E a Fé, que tomava uma xícara diáfana de café ao lado da menina, chorou amargamente.

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