21.8.05

Minicontos do desconforto -- 80

Tocou a música que havia sido "dela", na adolescência.

Eles estavam alegres, haviam dançado e bebido pequenas batidas geladinhas de morango; estavam naquele território que fica entre iniciar o vôo para o nirvana ou se render ao desejo tão sublimado na busca da perfeição (perfeição lá para as nêgas do Buda, né?, que para nosso corpo sedento e trêmulo não serve mesmo, pensou ele, dominado pela vodca). Ele se sentou um pouco, ouvindo os acordes suaves.

Então, de repente ela o olhou de um modo estranho.

-- Você se importa se eu te beijar?

-- É claro que não -- ele se ouviu dizer numa voz cheia de nonchalance, que escondia a tensão súbita.

Ela deu-lhe um pequenino beijo nos lábios. Ele ficou insatisfeito. Veio outro beijo tímido, mais um, mais um e então ele lhe tocou os cabelos, acariciando sua nuca e sentindo todo aquele calor sólido subir-lhe pelo meio das pernas, exatamente como sentiu o caseiro de Lady Chatterley. A ereção foi pronta e inevitável.

E exatamente aí ela abriu a boca e as línguas deslizaram livres e sem vergonha, sem culpa, e então o beijo foi sôfrego como uma espera embutida no palato durante anos; as colcheias da música pareciam estar dentro da boca perfumada, as cifras do violão inscritas no batom delicado que se misturava aos líquidos amorosos, à respiração que parecia gemer e sussurrar dialetos perdidos no tempo, na relva e nas fontes dos jardins babilônicos.

Ele a abraçou, envolveu seu corpo no laço de seus músculos; o beijo ficou mais intenso e as línguas eram como katanas forjadas em carbono, que se tocavam e recuavam em movimentos ensaiados, cuidadosos, mas tão intensos que tudo à volta deles sumiu de repente e ambos se sentiram em outro lugar, em outra época, uma época pagã, livre, algo debochada, onde havia correntezas de vinho e sombras generosas com um frescor realmente novo.

A música voltou quando ela deitou devagar a cabeça em seu peito.

Eis a verdadeira sabedoria, a sabedoria do gesto: beijar, pensou ele. Para que se livrar do desejo, se é justamente ele que leva à ausência de sofrimento? O desejo é o cerne de nossa condição, refletiu. E não apenas o desejo de possuir -- ali, o desejo era de se entregar, de (se possível) arrancar sua alma, dobrá-la e dar de presente a ela.

Ele já saíra com muitas amigas, e muitas vezes quisera dizer-lhes o que ia na alma com um beijo, porque a certo momento da noite as palavras se retiravam para dormir. Mas a maioria não havia compreendido essa vontade premente.

Ela mudara isso e não percebera. Mas ele nunca se sentira tão feliz.

Ela abriu sua alma para ele o resto da noite, falando de todos os seus conflitos interiores. Ele ouviu e deu sua opinião. Mas, toda vez que queria falar de si e do que sentia, simplesmente a beijava com ardor.

E nunca ele foi tão eloqüente.

Nenhum comentário: