Minicontos do desconforto -- 77
(para Crib Tanaka)
Acendeu a vela e olhou para o rosto marcado no espelho do banheiro. Mais uma vez a luz se fora, mas ela até preferia a casa assim, às escuras. Desse jeito não dava para ver as paredes desbotadas, as infiltrações, o chão de ardósia sem graça e os móveis doados pelos parentes ao longo dos anos. Que decoração.
Voltou para a sala, a fumaça esguia da vela evolando-se devagar e silenciosamente por sobre o ombro. Então percebeu que a luz tênue mostrava um outro ambiente: cortinas pesadas, cadeiras do século XIX, um pedaço de tapete persa no chão, um aparador rebuscado... Onde estava o televisor? E o celular que estava sendo carregado em cima da mesa... ah, a mesa era outra, redonda, com uma toalha de renda e louça Limoges. Taças cheias de vinho.
E ele ali, observando-a. Só que com roupas dos anos 1890.
Sentou-se. Percebeu que estava falando em francês. Bebeu do vinho, vermelho e cheio de vida, acordando seu sangue há muito estacionário.
E então, de repente, estava rindo. A fumaça da vela parecia rir com ela, dançando no meio dos dois, agora num castiçal que aparecera do nada.
A noite caminhou célere. Os risos aumentaram. Ela jurou ter ouvido violinos e um piano. Até que, vencida pelo vinho e pela alegria, desmaiou suavemente sobre a mesa.
Acordou com a cara em cima do celular, as luzes acesas como uma explosão diante de seus olhos. A vela se consumira. Um montinho de cera marcava seu lugar.
Achou que havia sonhado. Só entendeu que havia acontecido um milagre quando foi à cozinha beber água e achou a caixa de velas em cima da pia. Com todas as velas dentro.
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