10.4.07

Minicontos do desconforto -- 90

Acordou uma noite e compreendeu que sua musa o tinha deixado quando começou a pensar em escrever um livro de receitas. Saiu correndo e a alcançou ainda na escada da portaria. Prostrou-se a seus pés, mas ela o esbofeteou e jogou em sua cara as páginas mofadas do romance de realismo fantástico que jamais conseguira terminar. Desesperado, implorou por mais uma chance. Ela sorriu como só as musas são capazes de sorrir. Ele sentiu voltar a inspiração repentinamente diante daquele rosto angelical. Mas ela voltou-se e, sem uma palavra, deu dois passos e desapareceu na névoa. Musas são seres cruéis, pensou ele, lembrando-se de Allan Poe.

Depois daquela noite, nunca mais escreveu, exceto palavras cruzadas.

2.4.07

Minicontos do desconforto --89

Ela prestava tão pouca atenção a ele que, um dia, o pobre homem percebeu que podia ver através de sua própria mão. Aos poucos, a fria realidade chefiada pela rejeição atravessou seus braços, suas pernas, seu abdome e finalmente ninguém mais (nem ele mesmo, diante de um espelho) podia vê-lo. Então, um dia ele desistiu e se deixou navegar com as folhas, as cinzas e as borboletas: pelo menos a brisa o beijava.