17.10.03

Minicontos do desconforto -- 58

Tinha medo de que tudo cedesse. Achava que as rachaduras estavam aumentando. E, a cada chuva, as infiltrações enchiam mais o piso de ardósia de água. O mais assustador era o barulho que os gatinhos recém-nascidos faziam no armário sob a televisão -- reque, reque. Quando estava vendo um filme de terror, dava solavancos na poltrona fora de hora por causa disso.
Agora só tinha como companhia a Dodó, a gata malhada que se sentava atrás de seu pescoço e ronronava pela madrugada. Era a única visão de beleza que lhe restara depois da insolvência final.
Uma noite o telefone tocou. Era um velho amigo, convidando-o para um trabalho free-lance. Iam pagar mal, como de costume, mas pelo menos daria para a cerveja. Foi até o endereço indicado. Recebeu-o um homem magro e bem-vestido. "Duas laudas", começou ele. "Mas sobre o quê?" "Deus".
Foi para casa. Ficou olhando a samambaia gotejante com o caderno esperando à sua frente.
Veio a Dodó e deitou-se na escrivaninha, olhando para ele. E só então houve o clique, com o velho jornalista percebendo em seus olhos despidos das torpes emoções humanas, revestidos apenas dos segredos da Natureza, o sentido da criação.
Ele começou a rir sozinho, espantando a gata sem querer. Tudo bem, agora era só escrever. Começou, num frêmito: "Darwin estava certo e errado ao mesmo tempo..."
Então a casa caiu.

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