31.1.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte II

-- Will, eu nasci no dia 2 de outubro de 1452, no castelo de Fotheringay. O mesmo castelo onde Maria Stuart perderia a cabeça em fevereiro de 1587, mas disso você deve se lembrar, pois estava bem vivo então. Meu pai era Ricardo, o terceiro Duque de York, e um homem, como eu, um bocado injustiçado. Aliás, é melhor começar daí, porque a história que vou lhe contar é uma de ódio e disputa por poder. Eu fui o último rei da Casa de York, que foi apeada do poder em manobras um tanto sujas. Tudo começa antes mesmo de 1400, no reinado de Ricardo II. Ricardo II, não sei se você sabe, era provavelmente bissexual. Mas se fosse um bom rei ninguém ia notar. O problema com ele (como também com o Eduardo II, seu bisavô) era que tinha porque tinha de botar seus favoritos para dar pitacos na administração do reino.

-- Também escrevi peças sobre isso.

-- Eu sei, e igualmente distorcidas, mas não tanto quanto a minha. De qualquer modo, só falo do Ricardo II para lembrar que ele foi deposto pelo primeiro sujeito da Casa de Lancaster a ocupar o trono inglês, Henrique de Bolingbroke, ou Henrique IV. Ele mandou matar Ricardo II após prendê-lo, mas as suspeitas de que o rei ainda vivia duraram tanto tempo durante seu reino de usurpador que precisou abrir o caixão de Ricardo só para provar à população que ele de fato estava morto.

-- Mórbido. Mas uma boa cena.

-- Henrique IV morreu em 1413, depois de uma terrível doença que lhe desfigurava a face e partes do corpo, além de aparentes ataques de epilepsia. Alguns os atribuíam a sífilis. Seu filho Henrique de Monmouth tornou-se então Henrique V. Este foi um grande guerreiro, o vitorioso da Batalha de Agincourt, que você tão belamente descreveu em sua peça sobre ele. Só que morrreu quando seu herdeiro, também chamado Henrique, tinha menos de um ano de idade. E aí a porca começa a torcer o rabo. Porque o reinado de Henrique VI foi um desatre total para a Inglaterra.

-- Também não é assim, Ma... desculpe, Ricardo.

-- É que você sempre escreveu do ponto de vista da Casa de Lancaster, a que está ligado meu maior inimigo, Henrique Tudor. Imagine, fazer uma peça em três partes sobre aquele bobalhão do Henrique VI...

-- Foi um bom rei.

-- Foi um rei bonzinho e babaca, governado pelos assessores e por aquela jararaca da mulher dele, Margaret de Anjou. Preste atenção e você verá o que quero dizer. Seu Amaro, desce mais uma cerveja aqui!

22.1.06

SHAKESPEARE E RICARDO III NA RIODADES

Parte I

Existe um lugar insuspeito perdido no subúrbio de Niterói. Chama-se Riodades e, lá, nada acontece. O tempo parou. Na esquina da rua Cinco de Março com a Álvaro Neves, fica a mercearia do Seu Amaro, um português simpático, bigodudo e bem-apessoado que gosta de puxar dois dedos de prosa com os clientes que aparecem para comprar uma cerveja ou um traçado. De vez em quando, Seu Amaro bota umas poucas mesas na calçada, para os bebuns de sempre jogarem um carteado.

Foi nessa mesa que, uma tarde, sentaram-se dois tipos. Ambos eram muito brancos. Um meio calvo, com uma barba penteada e um ar meio afetado. Outro, com um ar senhorial, lábios finos de juiz, olhos escuros e penetrantes. À primeira vista, poderia se pensar que mancava um pouco, mas o andar esquisito era na verdade causado pela cicatriz de uma velha ferida de batalha perto do joelho direito.

Embora os dois estivessem vestidos como a maioria dos homens da Riodades se veste no domingo — de bermudas, camisas de abotoar abertas e sandálias de dedo — e, também como os nativos, pedissem uma dose de cachaça antes de partir para a cerveja barata, seus nomes eram um tanto estranhos: William Shakespeare e Ricardo de Gloucester.

Outra coisa estranha era que, embora parecessem de carne e osso, os dois eram fantasmas. Fantasmas muito velhos — um do século XV, outro dos séculos XVI/XVII — e com uma certa conta a ajustar.

Esta é a crônica da conversa que William (Will) e Ricardo (que na verdade foi o rei Ricardo III da Inglaterra) tiveram naquela tarde pachorrenta. Eles falaram no inglês empolado de seus tempos, mas para o pessoal da mesa vizinha pareciam duas minhocas da terra falando um português bem rasteiro. É este que vamos ouvir aqui também.

— Will, você foi muito injusto comigo — começou Ricardo.

— Majestade, o senhor tem que entender...

— Não me chame disso aqui. Nem de senhor. “Você” servirá. Não queremos chamar a atenção.

— Sim, Ma... desculpe.

— Você foi muito injusto comigo, como eu dizia.

— Entenda: eu escrevia para os herdeiros do seu inimigo. Inimigo vencedor, diga-se de passagem. E você já estava morto há uns cem anos.

— Mesmo assim. Sua peça “Ricardo III” manchou minha reputação para sempre. Até hoje todo mundo acha que eu sou malformado, corcunda, a própria personificação do Mal.

— Para meus patrocinadores, você era.

— Eu o trouxe aqui porque acho que você deve conhecer a verdade.

— Sei.

— Não está interessado?

— Se não estivesse, não estaria aqui sentado. Mas a verdade é sempre um conceito muito subjetivo. Até me lembrei de outra peça minha, “Júlio César”. Você acha que a verdade sobre César era a mesma para Marco Antônio e Brutus?

— (Suspirando) Eu sei que não. Mas estou aqui para relatar apenas os fatos. Eu não sou um santo, mas sua injustiça me aborrece muito. Até Belzebu me sacaneia, dizendo que minha alma penada devia ser corcunda e manca. Não tenho ilusões de que recuperarei minha reputação, a não ser que você reencarne no século XV como um de meus aliados de York (risos), mas quero que me ouça mesmo assim. Vocês jornalistas detestam admitir seus erros.

— Nunca fui um jornalista. Escrevi peças e poemas.

— Foi um cronista do seu tempo, a seu modo. E aqui tem a chance de ouvir a história na fonte.

— Que seja. Estou ouvindo.

— Para começo de conversa, nunca conspirei contra meu irmão George, duque de Clarence. Eu o adorava. Ele é que cavou sua própria ruína. E também fui leal a meu irmão Eduardo IV até que ele desse seu último suspiro.

— Em vista de seus atos posteriores, eu duvido.

— Vou lhe contar a história desde o começo.

19.1.06

Mário de Andrade tinha razão ao dizer que amar é um verbo intransitivo.